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sexta-feira, 26 de abril de 2019

Jesus, homem de oração




“O Filho de Deus, feito Filho da Virgem, aprendeu a orar segundo o seu coração de homem. Aprendeu as fórmulas de oração com a sua Mãe, que conservava e meditava no seu coração todas as «maravilhas» feitas pelo Omnipotente (41). Ele ora com as palavras e nos ritmos da oração do seu povo, na sinagoga de Nazaré e no Templo. Mas a sua oração brotava duma fonte muito mais secreta, como deixa pressentir quando diz, aos doze anos: «Eu devo ocupar-me das coisas do meu Pai» (Lc 2, 49). Aqui começa a revelar-se a novidade da oração na plenitude dos tempos: a oração filial, que o Pai esperava dos seus filhos, vai finalmente ser vivida pelo próprio Filho Único na sua humanidade, com e para os homens” (CIC 2599).
É justamente no Evangelho de Lucas que vemos Jesus como “homem de oração”. No começo de sua vida pública, por ocasião do batismo, ele “se achava em oração” (3,21). Quando ele precisou escolher seus discípulos “passou a noite inteira em oração a Deus” (6,12). Sua fama ia crescendo e multidões queriam ouvi-lo. Ele poderia ter se aproveitado dessa situação para adquirir prestígio social, privilégios e obter vantagens, mais não, preferia “os lugares deserto para orar” (Cf. 5,16). Foi justamente em uma dessas vezes que Jesus orava que um dos seus discípulos lhe pediu: “ensina-nos a orar” (11,1).
“Não é, porventura, ao contemplar primeiro o seu Mestre em oração, que o discípulo de Cristo sente o desejo de orar? Pode então aprendê-la com o mestre da oração. É contemplando e escutando o Filho que os filhos aprendem a orar ao Pai” (CIC 2601).
Jesus ensina o seu jeito de se relacionar com Deus, expõe seu segredo. O Pai Nosso é a síntese de seu projeto “Depois de o Senhor nos ter legado esta fórmula de oração, acrescentou ‘Pedi e recebereis’ (Jo 16, 24). Cada um pode, portanto, dirigir ao céu diversas orações segundo as suas necessidades, mas começando sempre pela oração do Senhor, que continua a ser a oração fundamental” (CIC 2761) 
O teólogo Bohn Goss nos diz que os dois primeiros pedidos, Jesus nos propõe acolher o Pai com o seu projeto, expresso por seu nome e pela justiça do reino. Nos três pedidos seguintes, Jesus nos pede que, da mesma forma como ele, também nós respondamos ao Pai, vivendo novas relações entre nós[1].
A oração que Jesus ensina começa com uma palavra que parece sair da boca de uma criança: Abbá quer dizer paizinho, papai querido. Não foi o Mestre mesmo que disse que devemos nos parecer como uma criança para herdar o Reino dos céus? (Cf. Mt 18,3). Temos a certeza que esse pai acolhe, abraça e perdoa. Ao lado dele aprendemos a agir como filhos, cheio de confiança, entrega e segurança. Chamando a Deus de paizinho vamos sendo curados de tantas doenças da alma que adquirimos por causa da ausência, da falta de amor.
Devemos lembrar-nos de que, quando chamamos a Deus «Pai nosso», temos de nos comportar como filhos de Deus” (...) Pai nosso – que haverá de mais querido para os filhos do que o pai? – Este nome suscita em nós ao mesmo tempo o amor, o afeto na oração, [...] e também a esperança de obter o que vamos pedir [...]. De fato, que pode Ele recusar à súplica dos seus filhos, quando já previamente lhes permitiu que fossem filhos seus?” (CIC 2785)
Que através de nós seus filhos “seja santificado o seu nome”. Como filho desse Pai, trazemos seu nome como uma marca identitária. Sou Robson de Jesus, o crucificado que venceu a morte, fui registrado com a tinta do seu sangue que jorrou do lado aberto na cruz. Portanto, devo ser santo para santificar o seu nome. Devo agir manifestando a glória daquele que me chamou a ser filho. E como sua glória passa pela cruz, devo me identificar com esse caminho atualizando sua mensagem salvadora. Não podemos esquecer dos muitos irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Pai, principalmente os pobres, a quem devo servir no amor e na alegria, tornando santa nossa caminhada. 
Venha o teu Reino é assim que oramos. Diante das autoridades Jesus disse que o seu Reino não era deste mundo, por isso devemos saber de onde ele é para ajudar a implantá-lo. Quando ele diz que não é deste mundo devemos entender que não são as categorias de poder dos reinos deste mundo que devemos buscar. Não é aí que vamos encontrar o Senhor e Rei. Se o Reino é de Jesus, então devemos procurar a ele, que é rei, não como os outros reis, para fazermos parte do seu reino de alegria, paz e justiça (cf. Rm 14,17). Olhando para a atuação de Jesus nos evangelhos descobrimos facilmente que o reino de Deus não está aqui nem acolá mais sim na relação de amor que estabelecemos. É amando a Deus e ao próximo que antecipamos a chegada do Reino diminuindo a tensão que existe entre o agora e o ainda não.
“Só um coração puro pode dizer com confiança: ‘Venha a nós o vosso Reino’. É preciso ter passado pela escola de Paulo para dizer: ‘Que o pecado deixe de reinar no vosso corpo mortal’ (Rm 6, 12). Quem se conserva puro nos seus atos, pensamentos e palavras é que pode dizer a Deus: ‘Venha a nós o vosso Reino!’” (CIC 2819).
O pedido central do Pai-nosso é o pão nosso de cada dia. A economia do Reino está no centro dessa oração, pois não podemos nos conformar com a ausência das condições mínimas para que o ser humano viva com dignidade. Devemos trabalhar pelo pão partido e repartido, em uma nova lógica que supere toda o egoísmo que produz fome. Não podemos esquecer que a Eucaristia é o nosso pão de cada dia [...]. A virtude própria deste alimento é a de realizar a unidade a fim de que, reunidos no corpo de Cristo, tornados seus membros, sejamos o que recebemos. [...] E também são pão de cada dia as leituras que em cada dia ouvis na igreja; e os hinos que escutais e cantais, são pão de cada dia. Estes são os mantimentos necessários para a nossa peregrinação” (CIC 2837)
            Perdoar é remir, cancelar uma dívida. A boa nova do Evangelho é que Jesus veio pagar essa dívida por meio do seu sangue. Sendo todo pecador um devedor, Nosso Senhor nos ensina através do Pai Nosso que o perdão de nossas dívidas depende do perdão que damos aos nossos devedores (cf. Mt 6,12). O Perdão gera em nós uma relação de confiança, abandono nas mãos daquele que pode nos amparar, abraçar e levantar. Essa confiança nos encoraja a continuar o longo processo de conversão que depende do nosso arrependimento.
Jesus foi conduzido pelo Espírito Santo ao deserto. Lá ele foi tentado. A partir do seu exemplo oramos dizendo “não nos deixeis cair em tentação”. Não queremos ceder ao poder que oprime e marginaliza nem mesmo sucumbir ao perigo das riquezas que se levanta como um ídolo moderno. Não queremos soluções mágicas para resolver os problemas porque são ilusórias. Queremos assumir o caminho da partilha, do reconhecimento do senhoril de Jesus, do serviço doado e da humildade.
Amém, assim seja!




[1] https://cebi.org.br/biblia/senhor-ensina-nos-a-orar-lucas-111-13-ildo-bohn-gass-2/

sábado, 20 de abril de 2019

A paz esteja convosco


A casa do ressuscitado

“A paz esteja convosco” (Jo 20,19.21)

            No tempo de Jesus, a Palestina era dominada pelo Império Romano que impunha a sua “pax et securitas” uma propaganda ideológica imposta pelo uso das armas. O Imperador celebrava uma paz assegurada pela força. Foi assim que Augusto “pacificou” a Gália, Espanha, Alemanha, Etiópia, Arábia e Egito vencendo guerras e estabelecendo cláusulas de paz e segurança para justificar a perda de autonomia do povo subjugado que compensasse os temores iniciais da dominação. Por meio dessa ideologia acabavam alcançando seus intentos.
            O povo judeu foi subjugado pelo império romano. Para esse povo a concepção de paz não era apenas ausência de guerra ou conflito, nem mera passividade mais sim o bem estar da vida cotidiana. Eles entendiam que era preciso completar o que estava faltando para se atingir à plenitude. Por exemplo, quando alguém começa a construção de uma casa, a paz é estabelecida quando se chega ao fim da obra começada. O trabalho é gigantesco e muda a rotina de todos na casa. Porém, quando se conclui, a satisfação nos deixa em um estado de paz. A mesma coisa pode se dizer de um aluno que começa um trabalho escolar. Sua paz chega quando ele conclui o trabalho passando a respirar sossegado. Imagine a paz que se instala no devedor que consegue pagar suas dívidas?
               “Certo dia, conversando com seus discípulos, Jesus diz:” deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo dá. Não se perturbe nem se intimide vosso coração “(Jo 14,27).
            A Sagrada Escritura conhece a Deus como o “Deus da paz” (Cf. Is 9,5). Ela se manifesta a nós como uma saudação que contempla os desejos mais profundos do ser humano que envolve bem-estar e a tranqüilidade. Foi isso que o Divino Mestre desejou aos seus apóstolos. Eles estavam trancados por medo dos judeus (Cf. 20,19), afinal, a dor, a angústia e a tristeza tinham tomado o coração deles. A paz desejada pelo ressuscitado traz ao coração dos discípulos a paz que eles precisavam, aquietando suas almas atribuladas.
Muitas casas estão precisando receber a visita do ressuscitado, o Shalom de Deus que cura os corações atribulados por causa da dor da cruz. Pra que isso aconteça, não fuja da cruz, encare suas dores e sofrimentos, não se esconda nem corra, porque isso não vai resolver. É preciso enfrentar. Por isso mesmo Nosso Senhor exortou seus discípulos a “carregar a cruz e seguir” (Cf. Mt 16,24).
Um pouco antes, ouvimos o autor sagrado dizer que “no primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo logo de manhã. Recebeu então de Jesus a ordem de ir anunciar aos Apóstolos a Boa-Nova da Ressurreição. Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: Vi o Senhor” (Cf. Jo 20,1-18). Quem foi essa mulher que a Tradição, na Igreja Oriental, a chamou de isapóstolos  “igual a um apóstolo” e, na Igreja Ocidental, apostola apostolorum “apóstolo dos apóstolos”? Uma mulher marcada pela paz do Senhor! Antes, ela foi possuída por sete demônios (Cf. Lc 8,1-3) que foram expulsos por Jesus. Sabemos que as doenças eram atribuídas aos demônios (cf. 2Cr 16, 12); por isso, podemos entrever que esses “sete demônios” (número que indica plenitude) significava uma doença muito grave da qual ela foi curada. Sua tarefa foi uma miniatura da que a Igreja recebeu como um imperativo. 
Como já foi dito, a paz é o que mais desejamos. Por isso, quando recebo a paz que vem do cristo ressuscitado, devo prontamente comunicar essa mesma paz: “como são belos, sobre os montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz, do que proclama boas novas e anuncia a salvação, do que diz a Sião: o teu Deus reina” (IS 52,7). A paz que habita em mim deve se tornar paz para os irmãos e irmãs que necessitam de paz, principalmente os que moram comigo. 
Qual o contrário da paz? Quando investiguei o antônimo me deparei com significados que delineiam uma necessidade urgente da paz como caminho de cura: aflição, angústia, ansiedade, medo, pânico, confusão, gritaria, discórdia, desentendimento, desacordo, inquietação, confusão, etc. Essa lista é bem maior, mas essas palavras já são suficientes para recordar que a ausência de paz põe em risco e perturba o bem-estar familiar. Coisas corriqueiras podem afligir uma família: realidade financeira, o futuro dos filhos, o medo da violência, os traumas, a doença de um parente, a morte, os fracassos e decepções, divergências. Podíamos nos prolongar bem mais nos exemplos, mas esses já nos levam a entender a necessidade de receber “a paz do ressuscitado”.
Estamos testemunhando um emaranhado de fios descascados que tem provocado um curto circuito existencial. Conflitos de toda ordem tem nos atingido com a força de um “choque” nos deixando por vezes, atônitos. Como estamos ligados uns aos outros, sentimos as conseqüências de um mundo violento que não sabe onde encontrar a paz. As portas da casa do ressuscitado estão abertas, é preciso entrar nela nem que seja se arrastando, pois de outro jeito não assistiremos uma mudança real. 
Ficamos assustados quando uma criança de 12 anos nos assalta com uma arma em punho. Rapidamente julgamos e desejamos que as leis sejam aplicadas pra que essa criança seja punida exemplarmente. Só nos esquecemos que ela está ligada a esses fios descascados e tem sido atingida por fortes descargas de exclusão e marginalização. Ela não é um fio solto lançado no tempo, ela está fortemente ligada a realidades conflitivas que não foram administradas. Choramos por nossas perdas, mais às vezes não derramamos uma lágrima pela conversão dessa criança, ao contrário, o classificamos prontamente como delinquente e bradamos pra que ela seja punida com severidade.
O exemplo acima demonstra que existem tensões que testemunhamos cotidianamente. Conflitos que criam um estado de guerra destruindo valores essências como confiança, respeito, cooperação e perdão. Brigas, contendas, xingamentos, intrigas, fazem parte de um receituário que não cura, e sim adoece. Em muitas circunstancias, esse receituário pode levar a morte. 
Na tradição judaica falava-se da lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”. De influência babilônica, esse princípio já demonstrava um avanço do ponto de vista da convivência social, pois antes o que prevalecia era a lei de Lamec onde se agia por impulsividade, tendo a força como determinante nas relações de poder. Através da lei de Talião se esperava que o judeu agisse com proporcionalidade, imputando ao culpado uma pena na mesma medida do mal infligido. No sermão da montanha, Jesus de Nazaré põe em relevo essa lei dando a ela uma nova interpretação “não resistais ao mau. Pelo contrário, se alguém te esbofeteia na face direita, vira-lhe também a outra”. 
Qual lei impera em minha casa? A lei de Lamec, a do Talião ou a do Cristo ressuscitado? Quando somos impulsionados pela lei de Lamec nos tornamos agressivos, violentos. Gostamos de uma boa briga, provocamos, insultamos, colocamos “lenha na fogueira” pra que o fogo da discórdia cresça rápido. Acabamos dominando os mais fracos não nos importando com o sofrimento causado. Com a lei de Talião queremos pagar na mesma moeda, na lógica de que o “mal com o mal se paga”. Isso faz crescer o círculo do ódio, vingança e inimizade. Precisamos urgentemente revogar essas duas leis pra começar a reconstruir nossa casa que se encontra em ruína. Para essa grande tarefa devemos assumir a lei evangélica proposta pelo Mestre: “amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos perseguem” (Mt 5,44).
É urgente uma educação para a paz que percorra em primeiro lugar a casa do ressuscitado, lugar do encontro transformador que produz em nós a força necessária para vencer o mal. Termino com uma profecia em forma de poesia:

Vida ou morte
ou vida de morte?
Parto de dor,
vida sem amor, campo sem flor.
Em vez da abundância das águas, a seca da nascente.
Vento frio, escuridão ao meio dia.
Jovens sem esperança, crianças sem brincar.
Ausência de lar, paz,
cor e calor.
Vida ou morte
ou morte de vida?
Espera-se um novo dia, onde a vida escondida
se torne conhecida.
Onde se abrirão os olhos dos cegos,
o ouvido dos surdos,
a boca dos mudos.
Com mãos fortalecidas e joelhos revigorados
soltaremos de cima dos telhados
o grito de vitória na madrugada
daquele eterno dia onde a vida venceu a morte.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

A casa da ceia

Jesus enviou Pedro e João, dizendo: ide e preparai-nos a ceia da Páscoa. Perguntaram-lhe eles: onde queres que a preparemos? Ele respondeu: ao entrares na cidade, encontrareis um homem carregando uma bilha de água; segui-o até a casa em que ele entrar, e direis ao dono da casa: o Mestre pergunta-te: onde está a sala em que comerei a Páscoa com meus discípulos? Ele vos mostrará no andar superior uma grande sala mobiliada, e ali fazei os preparativos” (Lc 11, 8ss)
A diakonia é um grande aprendizado que fazemos quando olhamos para a práxis do Mestre. Ele mesmo disse que veio para “servir e não ser servido” (Cf. Mt. 20,28). Na multiplicação dos pães, o Senhor partiu o pão e deu aos discípulos pra que distribuíssem (Cf. Mt 14,19). Assim o fizeram. Nessa outra ocasião, Pedro e João fizeram o que aprenderam preparando o ambiente para a ceia.
E quem era o homem que emprestou a casa para a última ceia do Senhor? Não sabemos. A verdade é que esse anônimo foi testemunha do memorial da Eucaristia, sinal do amor de Deus que se doa por nossa salvação.
Esse homem abriu a porta da sua casa e recebeu toda a comitiva de Jesus. Quem costumamos receber em nossa casa? Alguém com quem estabelecemos uma relação de intimidade, afinal, esse é nosso lugar, as paredes escondem o que somos, guardam nossa história. Quando alguém entra na minha casa descobre quais são as minhas crenças, meus valores. Entrar na casa é entrar na forma como às pessoas vivem, se relacionam, seus gostos e preferências, seus sonhos e esperanças. Podemos também tocar um mundo de sombras, de tormentos e tristezas, isso porque máscaras podem ser usadas para esconder quem realmente somos. Às vezes, dramatizamos um “comportamento adequado”, com o intuito de ocultar os males que nos atormentam e maltratam.
A ação do dono da casa é para nós um convite permanente de Deus que diz, “abre a porta da tua casa, deixa eu entrar...”. Essa casa onde é celebrada a ceia é um convite permanente a intimidade. Nossa alma é como uma porta que precisa ser aberta. Só que ela não se abre assim tão facilmente. Existe uma voz que ecoa nos chamando, se presto atenção nessa voz, corro o risco de aceitar sua entrada. Quando isso acontece, me deixo conhecer como eu sou. Quanto mais tempo essa pessoa passa em minha casa maior será o conhecimento que teremos um do outro. “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e me abrir à porta, entrarei em sua casa e cearemos, eu com ele e ele comigo” (Ap. 3,20). Já imaginou o que vai acontecer com você se a porta da sua alma se abrir para Deus? Quanto mais tempo você deixar Deus ficar com você, mais amor se manifestará como uma luz a dissipar toda escuridão. Como Deus nos conhece “sabe tudo...quando sento ou me levanto...quando ando e quando repouso...” (cf. Sl 138) ele acaba sendo nossa melhor companhia. Podemos até rejeitar o Senhor, mais Ele permanecerá à espera de um convite, e quando isso acontecer, tudo se transformará.
O dono daquela casa onde foi celebrada a ceia ouviu o recado do Senhor e deixou que eles entrassem. Esse homem entrou na intimidade, participou do mistério. Devemos receber continuamente essa visita bendita em nossa casa interior pra que tudo seja iluminado. Na escuridão tudo se esconde, impera a desconfiança, o medo e a dúvida. Temos dificuldade de sair do lugar. Se continuamos caminhando na escuridão, tropeçamos, caímos e nos machucamos. Não podemos temer a luz, ao contrário, devemos nos expor. “Deus é luz” (1 Jo 1,5), Quando sua luz nos atinge, tudo fica às claras e a sombra do erro, da discórdia, da ira, da exclusão, dos preconceitos, das maldições vão se dissipando.
O que se espera quando recebemos alguém em nossa casa é que isso nos cause grande alegria, contentamento, porque é momento de celebração. Sempre inventamos motivos pra ficarmos juntos: aniversários, comemorações como dia das crianças, dos pais, das mães, Páscoa, Natal, etc. Nessa hora organizamos tudo. A casa é o lugar para reunir, unir às pessoas que gostamos, colocar o papo em dia, falar das conquistas, das dificuldades, enfim, fazer dessa ocasião uma oportunidade de criar vínculos. Nessa hora, acolho, partilho, quero agradar. Às vezes não estamos tão bem, mais “disfarçamos” procurando oferecer nosso sorriso aos que chegam.
Vejamos o exemplo dos aniversários. Quando se aproxima a data de aniversário de alguém que amamos já começamos a imaginar como vamos comemorar essa “data querida”. Começamos a organizar tudo. Enfeitamos a casa com balões, frases, imagens. Não pode faltar o bolo. Logo juntamos e cantamos o tradicional “parabéns pra você”. Todo o esforço que fazemos para celebrar o dom da vida de quem importa pra nós, se torna uma chance mútua de cura do egoísmo, da ingratidão, soberba e orgulho. Quando desprezamos ou não valorizamos momentos como esse, nos tornamos insensíveis, frios e indiferentes e vamos nos distanciando do que realmente importa. Com a Eucaristia aprendemos o verdadeiro significado desses momentos.
“Antes da festa da Páscoa, sabendo que chegara a sua hora...” (Jo 13,1) ele quis permanecer junto dos seus discípulos. Tendo encontrado o lugar, tudo foi preparado como os costumes judaicos e durante a refeição todos ouviram atentamente o que o Senhor disse: “Este é o meu corpo... Este é o meu sangue... fazei isso em memória de mim”. A partir de então sempre que celebramos essa sagrada refeição entramos novamente nessa casa, sentamos a mesa para receber esse alimento divino e passamos a cultivar uma espiritualidade eucarística.
Quando sentamo-nos à mesa cultivamos essa espiritualidade eucarística, aprendemos a ouvir a voz daquele que fala conosco. Nesse amoroso dialogo aprendemos a verdadeira diakonia, um serviço feito com amor, pois essa é sua exigência fundamental. Quem se aproxima da mesa come, pois o Cristo Senhor se oferece como alimento nos transformando em sacrifício agradável a Deus: por Cristo, com Cristo e em Cristo. A dimensão sacrifical empenha, portanto, a vida. Daí a espiritualidade do sacrifício, do dom de si, da gratuidade, da oblatividade que o viver cristão exige encontra no chão da nossa casa um terreno pra ser vivido. No pão e no vinho que levamos ao altar está representada a nossa existência, o sofrimento e o empenho de viver como Cristo, e segundo o mandamento dado aos seus discípulos. 
Saindo da nossa casa vamos à outra para celebrar a alegria de nos encontrar em torno da fé eucarística. É saudoso vê algumas pessoas que recordam com satisfação o tempo em que os pais reuniam toda a família para ir a Missa. Não se deixava ninguém em casa. Os filhos sentavam nos bancos da Igreja e só levantavam quando terminava a celebração. Hoje existem tantas outras oportunidades aos domingos, que encontramos famílias dizerem que não foram à missa porque não tiveram tempo ou porque estão muito cansados. A Missa já não reúne mais, parece que já não é mais aquela festa de antes. O que mudou? Apela-se constantemente pra novas tecnologias, avanços e ideologias que semeiam uma nova forma de se relacionar com o mundo. Os tempos são outros sim, mas Cristo continua o mesmo, alimento dos cristãos. Devemos reencontrar o sentido da Eucaristia, “beleza tão antiga e sempre nova”.
           Uma coisa é certa: a família que celebra o dom de Cristo na Eucaristia aprendem a partir, partilhar, respeitar as diferenças e reconhecer a nossa igualdade como filhos e filhas de Deus. Cultivam virtudes que criam a possibilidade de uma nova sociedade marcada pela bondade, paciência, justiça e amor. Reconhecem a missão de transformar o mundo pelo testemunho de vida familiar onde o perdão reina absoluto. Sabem que na comunhão, todos podem chegar de mãos dadas ao novo Reino de paz. Criam laços de solidariedade movidos pela compaixão evangélica que não se conforma com as inúmeras desigualdades, injustiças e omissões do nosso tempo. Creio que é urgente que as famílias redescubram o valor perene da Eucaristia como condição pra uma nova ordem social, baseadas em princípios que não envelhecem ao longo do tempo.  

sexta-feira, 12 de abril de 2019

O cego de nascença


“Somente os que assim são libertados e erguidos poderão seguir aquela luz que proclama: Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, não andará nas trevas. Realmente o Senhor faz os cegos verem. Os nossos olhos, irmãos, são agora iluminados pelo colírio da fé. Para restituir a vista ao cego de nascença, o Senhor começou por ungir-lhe os olhos com sua saliva misturada com terra. Cegos também nós nascemos de Adão, e precisamos de ser iluminados pelo Senhor. Ele misturou sua saliva com a terra: E a Palavra se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14). Misturou sua saliva com a terra, como fora predito: A verdade brotou da terra (cf. Sl 84,12). E ele próprio disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Dos Tratados sobre o Evangelho de São João,de Santo Agostinho, bispo 


Algo de extraordinário acontece com aquele homem que era cego desde que nasceu. (Cf. Jo 9, 1-41). De forma miraculosa Jesus o cura. Os fariseus não compreendem, interrogam o homem. Os pais ficam temerosos, os vizinhos curiosos. As autoridades teimam em reconhecer o ocorrido, ameaçam expulsar quem diga que Jesus é o Cristo, o Messias. Há divisão entre eles, e Jesus aparece claramente como “sinal de contradição” (Lc 2,34). 

Jesus. Ele vê o homem. Dele se aproxima e de forma miraculosa o cura. Sua ação causa divisão. A leitura tem valor catequético-batismal por isso mesmo o autor faz progredir a compreensão a respeito dele: homem (v.11), um profeta (v.17), procede de Deus (v.33) e Senhor (v. 38). O Filho de Deus quer que nossos olhos se abram, que o reconheçamos. Por isso veio como “luz do mundo” (Jo 8,32), Ele é “a luz verdadeira que ilumina todo homem...mais o mundo não a reconheceu (Cf. Jo 1,9-10). Deus é luz” (1 Jo 1,5), Quando sua luz nos atinge, tudo fica às claras e a sombra do erro, da discórdia, da ira, da exclusão, dos preconceitos, das maldições vão se dissipando. Em sua luz somos chamados a iluminar o mundo (Cf. Mt 5,16) que caminha na escuridão. 

Os discípulos. Eles participam da cena fazendo uma pergunta. “Rabi, quem pecou, para que nascesse cego: ele ou seus pais? A pergunta deles reflete uma crença antiga que considera a doença como um “castigo” pelo pecado cometido (Cf. Ex 20,5). As doenças são sinais manifestos da condição de fraqueza em que o homem se encontra desde o primeiro pecado e da necessidade que tem de salvação. Devemos contemplar toda essa realidade dolorosa pela qual passamos com o mesmo amor que vem do Senhor. “(...) As curas que fazia eram sinais da vinda do Reino de Deus. Anunciavam uma cura mais radical: a vitória sobre o pecado e sobre a morte, mediante a sua Páscoa. Na cruz, Cristo tomou sobre Si todo o peso do mal e tirou ‘o pecado do mundo’” (Jo 1,29) (CIC 1505). 

Os pais. Esses não querem tomar partido. Tem medo. Sabem que podem ser expulsos da comunidade judaica. Quais as conseqüências do seguimento de Cristo? Quero tomar partido? O Evangelho não impõe uma decisão de nossa parte? Estou disposto a correr os riscos dessa decisão? Os pais não quiseram se envolver. Era seu filho, eles sabiam o que tinha acontecido. Mais se calaram por medo. E nós, o que vamos fazer? 

 O cego. Ele é um arquétipo dos que fazem o caminho batismal. Os antigos usavam uma expressão “essa mulher deu a luz”. Enquanto na barriga da mãe a criança vive na “escuridão”, quando nasce vê a luz. Os renascidos pelo Batismo contemplam uma nova luz. Na antiguidade o Batismo se chamou “iluminação” (photismós). O batizado é “filho da luz”, alguém que enxerga com clareza, e que anda na luz. Pois a luz não é só para ser contemplada, mas para caminharmos nela, realizando as obras daquele que nos batizou, Cristo Jesus. “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor… Desperta, tu que estás dormindo, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará”. O Papa Francisco em uma de suas homilias disse aos peregrinos: “O cristão deveria ser uma pessoa luminosa, que traz a luz, que sempre dá luz. Uma luz que não é sua, mas é um presente de Deus, o presente de Jesus. E nós levamos em frente esta luz. Se o cristão apaga esta luz, a sua vida não tem sentido: é um cristão somente de nome, que não leva a luz, uma vida sem sentido”. 

Autoridades. O autor salienta a progressiva cegueira deles. Eles só conseguiam enxergar a lei, o delito. Não conseguiam vê o dom do Pai. O pecado nos faz cego. A graça de Deus nos devolve a visão. Eles interrogam o cego mais não ficam satisfeitos com sua persistente resposta. A nossa cegueira espiritual nos impede de reconhecer o Senhor. Ele caminha conosco, está tão perto e nós não o vemos. Enquanto estamos cegos para a graça de Deus, caímos no abismo da iniquidade e afundamos na “desgraça” de uma alma fétida. Devemos receber o banho da regeneração. E como isso acontece? Dizendo: “vem Senhor, salva-me”. Rapidamente saímos do lamaceiro e somos lavados. É isso que acontece quando somos batizados. Esse banho nos faz enxergar novamente. Devemos renovar continuamente a graça batismal para não cairmos na “desgraça” outra vez.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Mestre, que belo estarmos aqui!



Os Evangelhos relatam um acontecimento ocorrido no cume do monte: a transfiguração. Jesus escolhe três dos seus apóstolos, Pedro, Tiago e João e sobe com eles e, diante dessas testemunhas se transfigura (Cf. Mt 17,1-12; Mc 9, 2-13;Lc 9,28-33). É um quadro rico de sentido, pois ali, EOs Evangelhos relatam um acontecimento ocorrido no cume do monte: a transfiguração. Jesus escolhe três dos seus apóstolos, Pedro, Tiago e João e sobe com eles e, diante dessas testemunhas se transfigura (Cf. Mt 17,1-12; Mc 9, 2-13;Lc 9,28-33). É um quadro rico de sentido, pois ali, Ele manifesta todo o seu esplendor. Ao contemplar esse acontecimento, Pedro diz atônito “Mestre, que belo (bom) estarmos aqui!”.

A montanha é lugar de encontro com Deus. Dois personagens que aparecem na cena, Moisés e Elias tiveram experiências luminosas nesse lugar de solidão. (Cf. Ex 24; 1 Rs 19). Devemos subir a montanha para orar, e porque não dizer aprender a orar como uma montanha, entrar em comunhão com aquele que se deixa conhecer. A montanha permanece imóvel diante da eternidade, nada é capaz de abalar. A própria imagem da montanha é um convite a adquirirmos raiz, solidez, firmeza em nossa vida. Esse encontro faz com que eu tenha um conhecimento de Deus e de mim mesmo que me abre ao transcendente. Me afasto ao mesmo tempo em que me aproximo, estou distante e tão próximo e acabo descobrindo o que se escondia.

Diante das testemunhas escolhidas, Jesus se transfigura. Pedro contempla e deseja permanece naquele lugar, seus olhos estão diante do eterno. É uma troca de olhares que o deixa deslumbrado, espantado e fascinado. Deus revela ao ser humano, criatura finita, o mistério de sua transcendência, e ele acolhe o inacessível, o insondável e inefável na fragilidade de sua condição. “Em sua luz contemplamos a luz” e nela somos transformados. Sua ação em nós dissipa toda a escuridão e nos faz enxergar a beleza que seduz. Mas, é preciso descer, mesmo querendo permanecer nesse lugar é preciso descer, pois devemos resplandecer a luz do Tabor. Não foi a isso que Cristo nos chamou? (Cf. Mt 5,16).

Pedro não entendia que Jesus precisava descer para realizar o projeto de salvação do Pai. “Desce para sofrer na Terra, para servir na Terra, para ser desprezado e crucificado na Terra. A Vida desce para se fazer matar: o Pão desce para passar fome; o Caminho desce para se cansar de andar; a Fonte desce para ter sede; - e tu recusas-te a sofrer? (CIC 320).

Diz São Leão Magno: “A principal finalidade dessa transfiguração era afastar dos discípulos o escândalo da cruz, para que a humilhação da paixão, voluntariamente suportada, não abalasse a fé daqueles a quem tinham sido revelada a excelência da dignidade oculta de Cristo”.

Não existe ressurreição sem cruz, glória sem dor e sacrifício.

Moisés e Elias, são testemunhas do acontecimento. Eles representam a lei e os profetas que se inclinam aquele que é o centro do mistério. Ela testemunha a favor daquele que realiza em si a plenitude do que havia sido anunciado. O cumprimento da promessa se realiza em Cristo Jesus, Nosso Senhor. Ele é a plenitude, a nova e eterna aliança.

A subida e a descida que está presente como movimento do próprio monte pode se realizar em cada momento da vida, dando ao tempo o “ritmo” marcado pela Palavra que “ilumina os nossos passos” que nos anima a uma vida nova. Esse movimento nos dá a possibilidade de promover uma saída do mundo para voltar a ele animando-o com a força do Espírito Santo que é vida e gera vida.

Ouvindo o “Filho muito amado” devemos animar com o espírito do evangelho as realidades temporais. Ter um olhar sobre a família, o trabalho, a política, a educação e sobre todas as outras realidades do mundo com o firme propósito de colaborar na transformação daquelas realidades que tem se distanciado dos valores evangélicos. Isso significa o esforço próprio de olhar o mundo na sua totalidade: contemplação e ação, oração e trabalho, fé e vida.

A experiência da Transfiguração se torna um quadro a ser contemplado a cada dia, onde a beleza dessa luz que irradia sobre os discípulos nos alcança fazendo de nós testemunhas da beleza no meio de uma geração desfigurada, portanto, sem rosto, que no encontro com o Cristo crucificado e ressuscitado descobrem novo sentido em sua vida.

Essa experiência nos torna arautos da esperança. Quando o Senhor desce o monte, a cena é de falta de sentido e desespero. Ele logo censura a falta de fé dos discípulos e indaga ao Pai daquela criança se ainda existe fé. O anúncio do Cristo transfigurado deve comunicar essa fé, a adesão daqueles que fazem parte “dessa geração incrédula”, da qual se refere o Senhor.

Mestre, que belo estarmos aqui!