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quinta-feira, 21 de março de 2019

O discípulo orante




“Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Mas como poderiam invocar aquele em que não creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador? E como podem pregar se não foram enviados? Conforme está escrito: Quão maravilhosos são os pés dos que anunciam boas notícias. Mas não obedeceram ao Evangelho. Diz, com efeito, o profeta Isaías: Senhor, quem acreditou em nossa pregação? Pois a fé vem da pregação e a pregação é pela palavra de Cristo” (Rm 10,13-17).

A experiência fundamental de toda a Sagrada Escritura é uma experiência de salvação. O conceito da palavra “salvação” vem do grego sötëria de onde a tradução nos remete a cura, remédio. No latim, salus tinha um significado muito particular na época. Salus é uma palavra que literalmente significa saúde. É o nome da deusa, filha de Esculápio, que possuía um templo no monte Quirino.  No tempo de Paulo, a soteria, do verbo sözö [salvar do mal, conservar do mal, preservar, socorrer] é o substantivo que tem como significado principal o de salvamento ou libertação de um perigo que ameaça a vida. Nos evangelhos, a palavra soteria aparece quatro vezes em Lucas e uma vez em João. Das quatro vezes que o termo aparece em Lucas, três delas pertencem ao canto de Zacarias e a outra é a declaração feita a Zaqueu de que a salvação entrou na sua casa (19,9). Em João, Jesus declara que a salvação provém dos judeus e não dos samaritanos [a salvação era Ele mesmo] (Jo 4, 22). Em todos os casos, soteria grego é traduzido por salus latino. Soteria aparece em Paulo dezessete vezes, das quais cinco em Romanos, e é sempre traduzido pelo salus latino. E na carta aos romanos, sempre tem um significado de salvação, como uma liberação escatológica do mal que é por assim dizer, a separação do amor de Deus. E quem opera essa salvação do homem é Jesus, a quem o anjo em Belém chamou no dia de seu nascimento Soter, que é Cristo Senhor.
A nossa salvação se na morte e ressurreição de Cristo Jesus: “Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando ainda éramos pecadores. Quanto mais, então, agora, justificados por seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Pois quando éramos inimigos fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho, muito mais agora, uma vez reconciliados, seremos salvos por sua vida” (Rm 5,8-10). É a partir desse mistério que se compreende toda a Sagrada Escritura, pois é onde se revela a plenitude da revelação: “Então abriu-lhes a mente para que entendessem as Escrituras” (Lc 24,45).
A aliança que Deus faz com o homem de Adão a Noé, de Abraão a Davi, de Amós a João Batista se realizou de modo definitivo no mistério pascal de Cristo Jesus, Nosso Senhor, que é o dom do Pai que, gratuitamente, se oferta por nossa Salvação. É este anúncio que Pedro faz no dia de Pentecostes a todos os ouvintes que participavam da festa naquela ocasião: “A este Jesus (que foi crucificado), Deus o ressuscitou, e disto nós somos testemunhas. Portanto, exaltado pela direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou, e é isto o que vedes e ouvis... Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes” (At 2,32-33.36).
Essa é a nova aliança em seu sangue, que por meio do dom do Espírito Santo se torna viva na história, na mesa onde se celebra a Palavra e a Eucaristia. O homem quando reza cria uma relação de aliança, que é como em toda a história da salvação, uma ação de Deus e do homem. Essa disposição interior vem do coração, que é o lugar do encontro, é o lugar da decisão. E é basicamente isso que acontece na oração: um exercício de um coração disposto a encontrar-se com Deus.
Antes de qualquer coisa, o discípulo deve sentir-se salvo por Cristo Jesus. Ele mesmo deve fazer o caminho de Paulo, de Tarso a Damasco, de Damasco a Roma, caminho esse que passa pela conversão. No encontro com o Senhor, a vida daquele que anuncia “boas novas” deve ser transformada, pois de outro modo, não se pode dar um testemunho autêntico de Cristo. A sua missão se dá a partir do conhecimento de que a Palavra de Deus tem o poder de salvar o homem e essa fé deve “penetrar como uma espada de dois gumes” (Hb 4,12b), tornando a sua vida um reflexo daquele que o salvou.
A economia da revelação tem como projeto a salvação do homem e com ele, de toda a criação. Em cada linha da Escritura se encontra esse projeto. É no chão da vida tão querida por Deus que se cultiva o desejo mais profundo do Senhor: salvar o homem. Aquele que anuncia a Palavra é um mensageiro, que reconhece os desafios de sua missão, mas que procura a todo custo realizar o serviço para o qual foi chamado porque sabe “que como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam, sem terem regado a terra, tornando-a fecunda e fazendo germinar, dando semente ao semeador e pão ao que tem fome, tal ocorre com a Palavra que sai da minha boca: ela não volta a mim sem efeito; sem ter cumprido o que eu quis realizado o objetivo de sua missão” (Is 55,10-11).
O testemunho da Sagrada Escritura é da verdade que Deus revela para nos salvar. Palavra de Deus que comunica vida ao homem, que abre o caminho para realização integral de toda criatura. Pois Deus “quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Tm 2,4), “verdade” (Jo 14,6) que é o próprio Cristo, que veio para salvar “o homem todo e todos os homens”. É preciso que Cristo seja anunciado e o díscipulo acolhe esse salutar chamado porque reconhece que não há outro caminho de salvação do gênero humano.
Toda a Palavra de Deus é comunicação. Desde a sua primeira página: “Deus disse” (Gn 1,3) até a última: “O Espírito e a esposa dizem: vem” (Ap. 22,17) Ele se comunica para estabelecer uma relação de comunhão e fazer com que a criatura reconheça o Criador que o formou “a sua imagem e semelhança” (Cf. Gn1,26). Nessa comunicação, Deus revela a verdade sobre si mesmo e sobre o homem, em um diálogo que chega ao seu ápice na Encarnação do próprio Filho que “revela o homem ao próprio homem”, a fim de que esse chegue à felicidade. Sua Palavra se torna palavra humana, cria uma cultura de reciprocidade que se opõe à idolatria onde os ídolos “têm boca, mas não falam; tem olhos mas não vêem; têm ouvidos, mas não ouvem; têm nariz, mas não cheiram” (Sl 115,5-6). O Deus de Israel sempre espera uma resposta do homem, pois ele é “Palavra”. Toda comunicação é uma forma de transmitir uma mensagem. A Bíblia é a nossa mensagem. Tudo o que se faz, a partir de então, é tornar essa mensagem conhecida.
Por meio da ação do Espírito Santo, aquele que recebe a Palavra como uma comunicação da verdade faz um caminho de conversão eficaz, onde a divina mensagem se torna “uma lâmpada para os seus pés, luz para o caminho” (cf. Sl 119,105) dando ao crente condição de um reto discernimento sapiencial da realidade e a capacidade não só de ouvir, mas de pôr em prática a Palavra (Cf. Lc 8,21).
O anúncio que se faz é anúncio da Palavra de Deus. Essa é a mensagem que deve ressoar na vida do discípulo de modo que ele seja a própria “Palavra em movimento”, um testemunho vivo daquilo que crê. E ele deve crer sem dúvida, na Palavra de Cristo, acolhida como verdade que capaz de operar uma verdadeira metamorfose na sua vida.
Na tradição de Israel o Shemá (ouve) é como um credo rezado pelo povo em que se afirma a vocação de ser unicamente de Deus, no amor mútuo que inclui obrigação de “andar em seus caminhos” (Dt 10,2) e servi-lo na medida do mesmo amor: “Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh! Portanto, amarás a Iahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração! (Dt 6,4-6). No Novo Testamento a Palavra que se deve ouvir é o próprio Cristo: “Este é o meu Filho amado, ouvi-o” (Mc 9,7).
Esse verbo, na língua hebraica (Shemá), tem um sentido bem mais amplo. Significa também escutar, entender, prestar atenção, discernir e examinar. Por isso, para o autor sagrado, esse imperativo não diz respeito a um exercício de audição, mas um envolvimento com aquilo que se ouve. De outro modo, aquele que ouve a voz de Deus por meio da Palavra, assume as exigências da própria Palavra.
É a voz do Filho que se ouve em toda Sagrada Escritura, porque no mistério de sua vida toda revelação chega à plenitude. No belo quadro da transfiguração a figura de Moisés e Elias nos dá a certeza de que em Cristo Jesus, a lei e os profetas chegam à perfeição “porque em dar-nos, como deu seu Filho, que é a sua palavra única (e outra não há), tudo que nos falou de uma vez nessa palavra, e nada mais tem a falar, (...) pois o que antes falava por parte aos profetas, agora nos revelou inteiramente, dando-nos o tudo que é seu filho.” (CIC 65). É a voz de Cristo que ecoa por toda a Sagrada Escritura, pois “Com efeito, nos livros sagrados o Pai que está nos céus vem carinhosamente ao encontro de seus filhos e com  eles fala” (CIC 104). Fala por meio do seu Filho, a quem devemos reconhecer como Senhor.
A essa voz se deve uma obediência de fé, que quer dizer, submeter-se livremente a palavra ouvida. Todas as Escrituras apontam para Cristo. Ele é o Filho muito amado do Pai, a quem devemos escutar e seguir como discípulos. A Palavra é uma declaração de amor de Deus por nós. Ele fala conosco como um amigo. São Bernardo afirma que, no plano da Encarnação do verbo, Cristo é o centro de todas as Escrituras. A Palavra de Deus, que já se ouvia no Antigo Testamento, tornou-se visível em Cristo.
“Que a Palavra habite em vós” (Cl 3,16). De que forma isso acontece? Por meio da leitura orante das Escrituras, onde através da ação do Espírito Santo, Cristo se forma em nós. De outro modo o discípulo não será capaz de anunciar a Palavra de Deus. Ele deve criar uma relação de amizade e, por meio desse encontro “entre amigos”, cultivar um “coração bíblico”, com uma disposição interior para ser “praticante da Palavra e não simples ouvintes” (Cf. Tg. 1,22a).
Ele deve visitar o jardim do Éden, com os patriarcas acender uma fogueira enquanto descansa da caminhada, deixar sua casa e ir ao encontro da terra da promessa, marchar com Moisés pelo deserto e renovar junto com os profetas a esperança depois de um doloroso tempo no exílio. Sentar a mesa com Marta e Maria. Está ao lado da Mãe de Jesus e João, o discípulo amado, na cruz do calvário e alegrar-se com o ressuscitado na manhã sem ocaso. Aquele que é o mensageiro que traz “boas notícias” deve ter familiaridade com a Sagrada Escritura, fazer dela o seu alimento. Aproximar-se da mesa onde se serve a própria Palavra viva. Como já dizia São Jerônimo: “A carne do Senhor é verdadeira comida e o seu sangue verdadeira bebida; é esse o verdadeiro bem que nos é reservado na vida presente: alimentar-nos da sua carne e beber o seu sangue, não só na Eucaristia, mas também na leitura da Sagrada Escritura. É, de fato, verdadeira comida e verdadeira bebida a Palavra de Deus que se obtém do conhecimento das Escrituras”.
A leitura orante da Bíblia quer ser um caminho para o conhecimento de Deus e de seu plano de salvação em Jesus Cristo através das Escrituras onde todos podem encontrar nesta forma de leitura um meio simples e prático para aceder pessoal ou comunitariamente a Palavra de Deus.
Nesse contexto, é preciso em primeiro lugar se alimenta do pão da Palavra, se aproxima da mesa da refeição, onde faz eco o velho ditado: “Saco vazio não se põe em pé!”. Mas como a sua missão é caminhar no desejo de tornar Deus conhecido, ele leva consigo uma reserva desse mesmo pão, para alimentar os que têm fome e sede de Deus. Ele repete ao povo o texto da Escritura que diz: “Quem vem a mim (diz o Senhor), nunca mais terá fome, e o que crê em mim nunca mais terá sede.” (Jo 635b). Em sua caminhada não vai ser difícil encontrar quem precise ser alimentado do pão vivo que é o próprio Senhor ressuscitado. Ao parafrasear o que diz João sobre o Pão da vida (Jo 6), podemos afirmar que quem não comer e beber da carne transformada em Palavra não tem a vida em si mesmo, se torna “saco vazio”, que logo cairá sem forças.
Ao anunciar a Palavra do Deus vivo o discípulo se colocar no lugar daquela criança que levou pra viagem só cinco pães e dois peixinhos (Jo 6,1-15). André, o irmão de Simão diz assustado, “mas o que é isso para tantas pessoas?” (vs. 9). Nós muitas vezes nos fazemos a mesma pergunta. Mas o que é essa Palavra pra uma multidão com fome e sede de Deus? Imagine se essa criança não levasse na bolsa a sua provisão! Imagine se você, não levar consigo o pão da Palavra capaz de saciar a fome do povo? Todos podem morrer de fome. Eu não quero pensar em tamanha tristeza!
A leitura orante da Bíblia indica um duplo caminho que conduz ao mesmo destino. O primeiro é de reconhecimento e acolhida. “Com efeito, diante de mim se dobrará todo joelho, toda língua jurará por mim, dizendo: só em Iahweh há justiça e força” (Is 45,23). O Apóstolo Paulo no hino aos cristãos de Filipos canta com a mesma inspiração: “Por isso Deus soberanamente o elevou e lhe conferiu o nome que está acima de todo o nome, a fim de que ao nome de Jesus todo o joelho se dobre nos céus, sobre a terra e debaixo da terra, e que toda a língua proclame que o Senhor é Jesus Cristo para a glória de Deus Pai” (Fl 2,9-11). Isso é reconhecimento, um sentimento de gratidão por algo recebido. E o que recebemos de Deus? O dom da salvação! Esse é o dom gratuito de Deus que nós resgatou “por um alto preço” (Cf. 1 Cor 6,19).
Uma pessoa acaba de bater a sua porta. O que você faz? Abre. Deus espera que a porta da nossa vida esteja aberta porque “ele quer fazer uma refeição conosco” (Cf. Ap. 3,20). A leitura orante da Bíblia é uma experiência de intimidade. Para o judeu, sentar a mesa é uma relação de amizade, de conhecimento um do outro. Ainda hoje, não se convida qualquer pessoa pra fazer uma refeição em sua casa. Quando você faz qualquer refeição fora de casa, se você senta ao lado de uma pessoa que não conhece o silêncio se torna o nosso companheiro porque falta intimidade. O que se espera na leitura orante, é que se crie uma relação de familiaridade, onde Deus se torne o “nosso grande amigo”. A cada dia, você tem a oportunidade de receber em sua vida o “Emanuel”, Deus conosco e é isso que dar sentido a nossa vida.
O outro caminho, e não menos importante, é o da oferta. Durante o sermão da montanha, Jesus faz um chamado, que faz parte da vocação de todo batizado: “Que brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam vossas boas obras e glorifiquem o Pai que está nos céus” (Mt 5,16). Quanto mais fogo na madeira, maior será o clarão! Devemos ser cheio do Espírito Santo, e como madeira, deixar se queimar, pra que maior seja o clarão do amor de Deus. Nesse sentido a Sagrada Escritura ocupa um lugar de suma importância porque o discípulo não anuncia a si mesmo, sua luz não é própria mais sim uma irradiação daquele que é a “luz do mundo”. A obra realizada evidencia essa ação poderosa de Deus cujo testemunho se faz ouvir através daquele que se oferta. E quanto maior a oferta, maior o dom. Ao fazer a leitura orante da Bíblia crescemos nessa “experiência” e é isso que faz a diferença!











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