Páginahttps://www.vaticannews.va/pt.htmls

sábado, 23 de março de 2019

lectio Divina - Parte I




Um pouco de história

Como parte do grande movimento bíblico que se deu logo após o Concilio Vaticano II, se tem procurado reaprender essa forma antiga de oração a partir da Sagrada Escritura que comumente se conhece como: Lectio Divina.
No Novo Testamento se encontra esse tipo de experiencia “orante” da Palavra, como por exemplo, no canto de Maria, o Magnificat. Esse hino é inspirado no cântico de Ana (1 Sm 2,1-10) e em muitos outros textos da Sagrada Escritura: “Minha alma engradece o Senhor, e meu espírito exulta em Deus meu Salvador” (Lc 1, 46b-47) conforme Is 61,10; 1 Sm 2,1) apenas para citar um exemplo.
O Antigo Testamento é relido à luz do mistério pascal de Cristo Jesus, o que faz com que a oração de todo o Novo Testamento seja uma consequência da própria relação do novo povo com a Escritura inspirada por Deus  “útil para instruir, para refutar, corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem se torne perfeito, qualificado para toda boa obra” (2 Tim 3,16-17), Escritura essa que o povo aprendeu a guardar em sua vida como um tesouro que se tornou uma verdade “que não se pode deixar de falar” (cf. At 4,20.
A utilização da Palavra como fonte para oração faz parte da experiência das primeiras comunidades que se reuniam em comunidades para ler, escutar e meditar a Sagrada Escritura: “Eles mostravam-se assíduas ao ensinamento dos Apóstolos, a comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2,42)[1]. Na caminhada dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35), o pano de fundo é uma experiência litúrgica da comunidade cristã, celebrando a Eucaristia no dia do Senhor, onde a dificuldade em compreender os acontecimentos chega ao seu fim quando se “Interpreta todas as Escrituras” a luz desse mistério.
Esse costume não é originalmente cristão, mas sim judeu. A leitura orante tem sua inspiração na trajetória do povo que aprendeu a reconhecer “os passos de Deus” em sua caminhada. Um exemplo disso encontra-se no livro de Neemias 8,1-12.  O contexto é a volta do exílio, a reconstrução da cidade de Jerusalém e o renascimento da identidade nacional. Trata-se de um ato litúrgico. A leitura é feita solenemente em seguida explicitada.
Nas sinagogas eram lidos trechos do Antigo Testamento, depois explicadas e interpretadas. Uma confirmação disso é o Targum: um livro de interpretações das passagens lidas na sinagoga.[2]
Logo depois, com os Padres da Igreja a reflexão é marcadamente bíblica. Considerar a Escritura como Palavra de Deus escrita, capaz de mudar a vida de seus ouvintes, consiste no primeiro e principal pressuposto da leitura teológica patrística. Os textos bíblicos circulavam nas comunidades, influenciando a vida dos cristãos e cristãs, formando o conjunto dos escritos Vétero e Neotestamentário, recebido e transmitido por vários grupos eclesiais, constituindo já no final do século II, o mais estimado tesouro da Igreja.
Com Orígenes (184-254), vem o termo Lectio Divina e o uso deste como método. Esse fazia homilia a partir de um texto da Sagrada Escritura lida continuamente durante a semana. Esse autor insistiu muito na importância da leitura divina como base de toda a vida ascética, para uma reta contemplação. Dizia ele que a vida espiritual do cristão é a Escritura lida, meditada, compreendida e vivida.
Na Carta a Gregório, Orígenes recomenda:
“Dedica-te à lectio das divinas Escrituras; aplica-te a isto com perseverança. Compromete-te na lectio com intenção de acreditar e de agradar a Deus. Se durante a lectio te encontrares diante de uma porta fechada, bate e abrir-te-á aquele guardião, do qual Jesus disse: ‘O guardião abri-la-á’. Aplicando-te assim à lectio divina, procura com lealdade e confiança inabalável em Deus o sentido das Escrituras divinas, que nelas se encontra com grande amplitude. Mas não deves contentar-te com bater e procurar: para compreender as coisas de Deus é-te absolutamente necessária a oratio. Precisamente para nos exortar a ela o Salvador nos disse não só: ‘Procurai e encontrareis’, e ‘Batei e servos-á aberta’, mas acrescentou: ‘Pedi e recebereis’” (Ep. Gr. 4). [3]
Sobressai imediatamente o "papel primordial" desempenhado por Orígenes na história da Lectio Divina. O grande Bispo Ambrósio de Milão aprendeu a ler as Escrituras a partir das obras de Orígenes e fez com que o Ocidente conhecesse essa rica tradição.
Jerônimo (340-420), que mantinha em Roma uma escola de Lectio Divina, acentua a dimensão cristólogica e a unidade da Sagrada Escritura, usando a imagem de uma casa com muitos quartos, cuja única chave é o Espírito Santo. À matrona romana, Leta, ele dava estes conselhos para a educação cristã de sua filha:
 “Assegura-te de que estude todos os dias alguma passagem da Escritura. Que acompanhe a oração com a leitura e a leitura com a oração... Que ame os Livros divinos em vez das jóias e os vestidos de seda” (Epístolas 107, 9.12).[4]
 João Cassiano (370-435) enfatiza a relação entre a Palavra e a experiência pessoal:
“Se, por conseguinte, queres chegar à ciência verdadeira das Escrituras, apressa-te a conseguir, primeiro, uma invariável humildade de coração. É ela que te levará à ciência, não a que enche de vento (1 Cor. 8,1), mas a que ilumina, pela perfeição da caridade. É impossível a uma alma impura obter a ciência espiritual”.[5]
Entre os séculos V e VI, essa prática torna-se comum na vida monástica. Um monge Cartuxo chamado Guigo II, organizou esse método em um livro que escreveu intitulado “A escada dos monges”, que apresenta os quatro degraus comumente utilizados: leitura, meditação, oração e contemplação, como a escada que sobe da terra ao céu:
A leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação do espírito. A meditação é uma ação deliberada da mente, a investigar com a ajuda da própria razão o conhecimento duma verdade oculta. A oração é uma religiosa aplicação do coração a Deus, para afastar os males ou obter o bem. A contemplação é uma certa elevação da alma em Deus, suspensa acima dela mesma, e degustando as alegrias da eterna doçura.
            O dizia ainda:
O primeiro degrau é dos principiantes; o segundo, dos que progridem; o terceiro, dos fervorosos; o quarto, dos bem-aventurados. Qual primeiro fundamento vem a leitura. Ela fornece a matéria e nos leva à meditação. A meditação, por sua vez, perscruta com maior diligência o que se deve desejar e, como que cavando, acha e mostra o tesouro. Mas, como não pode por si mesma obtê-lo, leva-nos à oração. A oração, elevando-se a Deus com todas as suas forças, obtém o tesouro desejável, a suavidade da contemplação. Sobrevindo a contemplação, ela recompensa o trabalho dos três degraus referidos, embriagando. A alma sedenta com o orvalho da doçura celeste. A leitura é feita segundo um exercício mais exterior; a meditação, segundo uma inteligência mais interior; a oração, segundo o desejo; a contemplação passa acima de todo sentido.[6]



[1] “Instrução para os neoconvertidos, nas quais as Escrituras eram explicadas à luz dos eventos cristãos, não mais como proclamação da boa nova a não-cristãos” (nota da Bíblia de Jerusalém, e).
[2] Na sinagoga o ensinamento da Torá era (é) feito principalmente através do Targum (a tradução do texto bíblico na língua conhecida da assembléia, versículo por versículo) e da Midrash, método de exegese usado pelos escribas, com a finalidade de encontrar o sentido oculto dos trechos da Torá, revelando seu sentido profundo e atual. É um método definido como espiritual, porque não parte de exigências racionais, mas vitais, existenciais. O que dá legitimidade à interpretação é a maturidade da experiência espiritual. Cf. Sante, Carmine di. Israel em oração. São Paulo, Paulus, 1989 p. 134-5.
[3]  http://www.veritatis.com.br/article/5010
 [4] http://www.veritatis.com.br/article/4995
[5] http://www.ecclesia.com.br/Biblioteca/monaquismo/xiv_conferencia_dos_padres_do_deserto.html
[6] https://www.avemaria.com.br/loja/images/pdf/445.pdf

Nenhum comentário: