Um
pouco de história
Como parte do grande movimento bíblico que se deu
logo após o Concilio Vaticano II, se tem procurado reaprender essa forma antiga
de oração a partir da Sagrada Escritura que comumente se
conhece como: Lectio Divina.
No Novo Testamento se encontra esse tipo de
experiencia “orante” da Palavra, como por exemplo, no canto de Maria, o
Magnificat. Esse hino é inspirado no cântico de Ana (1 Sm 2,1-10) e em muitos
outros textos da Sagrada Escritura: “Minha
alma engradece o Senhor, e meu espírito exulta em Deus meu Salvador” (Lc 1,
46b-47) conforme Is 61,10; 1 Sm 2,1) apenas para citar um exemplo.
O Antigo Testamento é relido à luz do mistério
pascal de Cristo Jesus, o que faz com que a oração de todo o Novo Testamento
seja uma consequência da própria relação do novo povo com a Escritura inspirada por Deus
“útil para instruir, para refutar,
corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem se torne perfeito,
qualificado para toda boa obra” (2 Tim 3,16-17), Escritura essa que o povo
aprendeu a guardar em sua vida como um tesouro que se tornou uma verdade “que não se pode deixar de falar” (cf.
At 4,20.
A
utilização da Palavra como fonte para oração faz parte da experiência das
primeiras comunidades que se reuniam em comunidades para ler, escutar e meditar
a Sagrada Escritura: “Eles mostravam-se assíduas ao ensinamento dos Apóstolos, a comunhão
fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2,42)[1]. Na caminhada dos discípulos de Emaús (Lc
24,13-35), o pano de fundo é uma experiência litúrgica da comunidade cristã,
celebrando a Eucaristia no dia do Senhor, onde a dificuldade em compreender os
acontecimentos chega ao seu fim quando se “Interpreta
todas as Escrituras” a luz desse mistério.
Esse
costume não é originalmente cristão, mas sim judeu. A leitura orante tem sua
inspiração na trajetória do povo que aprendeu a reconhecer “os passos de Deus”
em sua caminhada. Um exemplo disso encontra-se no livro de Neemias 8,1-12. O contexto é a volta do exílio, a
reconstrução da cidade de Jerusalém e o renascimento da identidade nacional.
Trata-se de um ato litúrgico. A leitura é feita solenemente em seguida
explicitada.
Nas
sinagogas eram lidos trechos do Antigo Testamento, depois explicadas e
interpretadas. Uma confirmação disso é o Targum: um livro de interpretações das
passagens lidas na sinagoga.[2]
Logo depois, com
os Padres da Igreja a reflexão é marcadamente bíblica. Considerar a Escritura
como Palavra de Deus escrita, capaz de mudar a vida de seus ouvintes, consiste
no primeiro e principal pressuposto da leitura teológica patrística. Os textos
bíblicos circulavam nas comunidades, influenciando a vida dos cristãos e
cristãs, formando o conjunto dos escritos Vétero e Neotestamentário, recebido e
transmitido por vários grupos eclesiais, constituindo já no final do século II,
o mais estimado tesouro da Igreja.
Com
Orígenes (184-254), vem o termo Lectio Divina e o uso deste como método. Esse
fazia homilia a partir de um texto da Sagrada Escritura lida continuamente
durante a semana. Esse autor insistiu muito na importância da leitura divina
como base de toda a vida ascética, para uma reta contemplação. Dizia ele que a
vida espiritual do cristão é a Escritura lida, meditada, compreendida e vivida.
Na
Carta a Gregório,
Orígenes recomenda:
“Dedica-te à lectio das divinas Escrituras; aplica-te a isto
com perseverança. Compromete-te na lectio
com intenção de acreditar e de agradar a Deus. Se durante a lectio te encontrares diante
de uma porta fechada, bate e abrir-te-á aquele guardião, do qual Jesus disse: ‘O
guardião abri-la-á’. Aplicando-te assim à lectio
divina, procura com lealdade e confiança inabalável em Deus o
sentido das Escrituras divinas, que nelas se encontra com grande amplitude. Mas
não deves contentar-te com bater e procurar: para compreender as coisas de Deus
é-te absolutamente necessária a oratio.
Precisamente para nos exortar a ela o Salvador nos disse não só: ‘Procurai e
encontrareis’, e ‘Batei e servos-á aberta’, mas acrescentou: ‘Pedi e
recebereis’” (Ep.
Gr. 4). [3]
Sobressai
imediatamente o "papel primordial" desempenhado por Orígenes na
história da Lectio Divina. O grande Bispo Ambrósio de Milão aprendeu
a ler as Escrituras a partir das obras de Orígenes e fez com que o Ocidente
conhecesse essa rica tradição.
Jerônimo
(340-420), que mantinha em Roma uma escola de Lectio Divina, acentua a dimensão cristólogica e a unidade da
Sagrada Escritura, usando a imagem de uma casa com muitos quartos, cuja única
chave é o Espírito Santo. À matrona romana, Leta, ele dava estes conselhos para
a educação cristã de sua filha:
“Assegura-te de que estude todos os dias
alguma passagem da Escritura. Que acompanhe a oração com a leitura e a leitura
com a oração... Que ame os Livros divinos em vez das jóias e os vestidos de
seda” (Epístolas 107, 9.12).[4]
João Cassiano (370-435) enfatiza a relação
entre a Palavra e a experiência pessoal:
“Se, por conseguinte, queres chegar à
ciência verdadeira das Escrituras, apressa-te a conseguir, primeiro, uma
invariável humildade de coração. É ela que te levará à ciência, não a que enche
de vento (1 Cor. 8,1), mas a que ilumina, pela perfeição da caridade. É
impossível a uma alma impura obter a ciência espiritual”.[5]
Entre
os séculos V e VI, essa prática torna-se comum na vida monástica. Um monge
Cartuxo chamado Guigo II, organizou esse método em um livro que escreveu
intitulado “A escada dos monges”, que
apresenta os quatro degraus comumente utilizados: leitura, meditação, oração e
contemplação, como a escada que sobe da terra ao céu:
A leitura é o
estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação do espírito. A meditação é
uma ação deliberada da mente, a investigar com a ajuda da própria razão o
conhecimento duma verdade oculta. A oração é uma religiosa aplicação do coração
a Deus, para afastar os males ou obter o bem. A contemplação é uma certa
elevação da alma em Deus, suspensa acima dela mesma, e degustando as alegrias
da eterna doçura.
O dizia
ainda:
O primeiro degrau é dos principiantes; o
segundo, dos que progridem; o terceiro, dos fervorosos; o quarto, dos
bem-aventurados. Qual primeiro fundamento vem a leitura. Ela fornece a matéria
e nos leva à meditação. A meditação, por sua vez, perscruta com maior
diligência o que se deve desejar e, como que cavando, acha e mostra o tesouro.
Mas, como não pode por si mesma obtê-lo, leva-nos à oração. A oração,
elevando-se a Deus com todas as suas forças, obtém o tesouro desejável, a
suavidade da contemplação. Sobrevindo a contemplação, ela recompensa o trabalho
dos três degraus referidos, embriagando. A alma sedenta com o orvalho da doçura
celeste. A leitura é feita segundo um exercício mais exterior; a meditação,
segundo uma inteligência mais interior; a oração, segundo o desejo; a
contemplação passa acima de todo sentido.[6]
[1] “Instrução para os
neoconvertidos, nas quais as Escrituras eram explicadas à luz dos eventos
cristãos, não mais como proclamação da boa nova a não-cristãos” (nota da Bíblia
de Jerusalém, e).
[2] Na
sinagoga o ensinamento da Torá era (é) feito principalmente através do Targum
(a tradução do texto bíblico na língua conhecida da assembléia, versículo por
versículo) e da Midrash, método de exegese usado pelos escribas, com a
finalidade de encontrar o sentido oculto dos trechos da Torá, revelando seu
sentido profundo e atual. É um método definido como espiritual, porque não
parte de exigências racionais, mas vitais, existenciais. O que dá legitimidade
à interpretação é a maturidade da experiência espiritual. Cf. Sante, Carmine
di. Israel em oração. São Paulo, Paulus,
1989 p. 134-5.
[5]
http://www.ecclesia.com.br/Biblioteca/monaquismo/xiv_conferencia_dos_padres_do_deserto.html
[6]
https://www.avemaria.com.br/loja/images/pdf/445.pdf
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