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quinta-feira, 28 de março de 2019

A Leitura da Bíblia



 O primeiro passo da Lectio Divina é a leitura. Não é preciso dizer que a Sagrada Escritura deve ser o livro de bolso do discípulo. Circula na internet um texto de autor desconhecido com o titulo a “A Bíblia x celular”. Ele faz algumas perguntas importantes: “Já imaginou o que aconteceria se tratássemos a nossa Bíblia do jeito que tratamos o nosso celular? E se sempre carregássemos a nossa Bíblia no bolso ou na bolsa? E se déssemos uma olhada nela várias vezes ao dia, como fazemos com nosso celular? E se voltássemos para apanhá-la quando a esquecemos em casa, no escritório...?”. Em nossa missão devemos fazer uso da Sagrada Escritura, esse é o nosso instrumento de trabalho. Em cada ofício, o trabalhador deve conhecer bem o seu instrumento de trabalho pra que então realize com eficiência a sua tarefa. Para que o discípulo realize bem sua missão ele precisa conhecer a Sagrada Escritura. E o primeiro passo pra esse conhecimento é a leitura. 
Mas a leitura não pode ser feita de qualquer forma. Devemos ler a Bíblia no mesmo Espírito que a inspirou.
No Evangelho de João, o Paráclito, aparece com aquele que “conduzirá a verdade plena” (Jo 16,13). Em outro lugar o autor sagrado afirma “que toda Escritura é inspirada por Deus” o que nos leva a crer que todo o trabalho dos autores sagrados se dá sob inspiração divina: Cada autor no seu contexto histórico expressou de maneira fundamental a revelação que Deus quis que estivesse ao alcance dos homens e mulheres de todos os tempos, de modo que essa revelação se tornasse “História da Salvação”. Ao afirma que Deus inspirou o autor sagrado não se quer dizer que ele tomou a caneta das mãos do hagiógrafo e escreveu de seu próprio punho. Isso seria uma visão ingênua. Ele inspira o autor a partir da sua própria experiência religiosa e esse por sua vez expressa aquilo que Deus quer manifestar ao povo. Diz um grande exegeta: “O homem escreve no papel e Deus na vida”. Cada um realizou a sua missão a partir do lugar, da cultura, da realidade sócio-política, econômica e religiosa presente no seu tempo, que o influenciou na hora de escrever.
No que diz respeito à leitura esse é o primeiro passo. Se colocar dentro do texto a partir do seu contexto. Vamos entender esse passo a partir de um exemplo. Leia Fl 2, 6-11.
Ao fazer a leitura de um texto, a primeira pergunta deve ser pelo autor. Nesse caso a resposta é fácil: o apóstolo Paulo é o autor.
Logo em seguida você se pergunta? Quem foi São Paulo? Essa pergunta tem importância? Se você conhece o autor, ficará mais fácil saber quais as suas intenções ao escrever. Todo aquele que escreve tem um destinatário. No caso de Paulo, a quem ele destina essa carta? A comunidade de Filipos, essa é a resposta. Como surgiu essa comunidade? Você pode ler nessa hora o livro dos Atos dos Apóstolos quando Lucas (foi companheiro de Paulo!) narra a segunda viagem do Apóstolo (At 15,39-18,22) e relata a fundação dessa comunidade.
Alguns anos depois Paulo destina uma carta a essa comunidade. Aqui está outra informação importante: Ele escreve uma carta. Não é uma poesia, nem narração, saga ou novela. É uma carta. Essa é a pergunta pelo gênero literário do texto sagrado, ou seja, a forma como o autor comunica aquilo que quer dizer. Você ler uma carta da mesma forma que ler uma poesia ou um fato jornalístico? Claro que não. A forma como o autor escreve revela a mensagem, a forma e a situação em que se encontra e essa compreensão é fundamental pra uma boa leitura da Bíblia. 
Quando Paulo escreve essa carta?
A atividade missionária de Paulo acabou por formar um corpo de “cartas”, com endereço certo: as comunidades por onde passou ou por onde pretendia passar (como no caso da Carta aos Romanos). Elas figuram entre os primeiros escritos do Novo Testamento e nos oferecem uma primeira impressão do que foi o “evento Jesus de Nazaré”, e como se desenvolvia a experiência pós-pascal nas comunidades.  Elas são escritos ocasionais, que servem como instrumento de comunicação entre o Apóstolo e as comunidades e procuram responder a situações do cotidiano das “Igrejas” ou dúvidas que permanecem depois de um certo tempo.
É provável que a carta aos Filipenses seja uma coleção de três bilhetes escritos em tempos e lugares diferentes. O primeiro (Fl 4,10-20) agradece a solidariedade dos Filipenses. Sabendo que Paulo estava na cadeia, a comunidade envia por meio de Epafrodito, uma ajuda. Quando escreveu o segundo (Fl 1,1-3,1+4,2-7.21-23) Paulo ainda está na mesma prisão. Mas parece tomar a decisão de usar sua cidadania romana para conseguir a liberdade e rever a sua comunidade. Esses dois bilhetes foram provavelmente escritos em Éfeso entre os anos 52 e 54. O terceiro bilhete (3,2-4,1+4,8-9) vai tratar de conflitos provocados por falsos missionários.
Até o momento não chegamos ao texto propriamente dito. E isso nos leva a considerar a necessidade permanente do estudo bíblico. Afirmamos nesse percurso à importância do discípulo ter familiaridade com a Sagrada Escritura. Ele deve conhecer a Bíblia e essa é uma tarefa árdua, pois são muitos os autores, gêneros literários, situações históricas, condições sociais, políticas e religiosas, que se distanciam dos nossos tempos. Esse é um esforço fundamental em nossa vida, pois esse conhecimento vai resultar em um anúncio cada vez mais eficaz da Palavra de Deus.
O que quero dizer é que devemos conhecer a Sagrada Escritura por dentro e por fora. Uma comparação pode ajudar nesse momento. Quando somos convidados pra conhecer a casa de um amigo, até o caminho nos faz pensar como seja a casa desse amigo. Ao chegar olhamos tudo ao redor. Se alguém lhe perguntasse como era a casa do seu amigo antes mesmo de entrar você já faria uma descrição da casa “por fora”.
É isso que faz o discípulo no estudo bíblico: ele pergunta sobre o autor, destinatário, data, gênero literário, contexto histórico, situação sócio-política e religiosa, influencias, etc. E o que isso ajuda no exercício da leitura orante da Bíblia? passa-los a enxergar melhor, pois quanto mais clarificada for nossa visão melhor vamos saborear a mensagem da salvação.
Mas esse olhar “por fora” cria uma expectativa pelo que tem "dentro da casa". Ao fazer a leitura entramos na casa, e facilmente cria-se um diálogo entre Deus e os homens. Portanto, a pergunta fundamental nessa hora é: “O que o texto diz?”. Mas é preciso “continuar a conversa”, partir da vida, do lugar em que me encontro. É atualizar o conhecimento da Sagrada Escritura na realidade da comunidade que lê, é considerar o que o texto é capaz de dizer hoje. Em nossa vida isso significa fazer a pergunta pela realidade onde pisa para em seguida anunciar como maior eficácia a Boa Nova. Apenas repetir o que se “aprendeu da Bíblia” não é suficiente é preciso dar sentido ao texto em novos contextos. Em uma palavra: “tornar vivo a mensagem da salvação na fé da comunidade orante!”.

Algumas indicações para a leitura da bíblia:

Observar a introdução e as notas de rodapé.
Linha do tempo ou cronologia.
Mapas.
Índice de assuntos e temas.
Vocabulário.
Um pouco de história para ler o texto dentro do contexto.
Atualizar, fazer um exercício de hermenêutica.
Evitar alguns tipos de leitura: fundamentalista, Espiritualista, dogmatista, etc.
Procurar ler livros de Introdução a Bíblia.
“Beber da fonte” que é a Palavra de Deus, fazer a experiência da Lectio Divina.



segunda-feira, 25 de março de 2019

Lectio Divina – Parte II




Quando aquela rainha Etíope viajava no seu carro ela lia as Escrituras. Felipe ao se aproximar percebe que aquela mulher não compreendia o que estava lendo. Ela mesma confessa que não havia encontrado quem lhe explicasse (Cf. At. 8,1ss). Esse é um exemplo de que nessa caminhada de leitura orante da Bíblia, precisamos de um companheiro de viagem: a Igreja.
O Concílio Vaticano II abriu as portas para o redescobrimento das Escrituras. No Documento Conciliar Dei Verbum, que trata da Revelação Divina, todo o povo de Deus é chamado a aprender “‘a sublime ciência de Jesus Cristo’ (Fil. 3,8) com a leitura frequente das divinas Escrituras, porque ‘a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo’” (DV 25). Essa leitura deve ser acompanhada da oração, é o que afirma o mesmo texto, porque não há conhecimento da Escritura sem oração, pois a Bíblia é diálogo, entre Deus e o homem, e é esse o simples itinerário de leitura orante porque “a Ele falamos, quando rezamos, a Ele ouvimos, quando lemos os divinos oráculos” (DV 25).
A Pontifícia Comissão Bíblica, por meio do Documento A interpretação da Bíblia na Igreja nos traz um conceito do que seja Lectio Divina:
“A lectio divina é uma leitura individual ou comunitária de uma passagem mais ou menos longa da Escritura, acolhida como Palavra de Deus e, que se desenvolve sob a moção do Espírito em forma de meditação, oração e contemplação”.
O Papa João Paulo II recomenda esse encontro vital com as Escrituras, para colher “no texto bíblico a Palavra viva que interpela, orienta e plasma a existência”. Já o Papa Bento XVI, por ocasião de uma Jornada Mundial da Juventude, recorda essa rica tradição aos jovens:
“Gostava, sobretudo, de lembrar e recomendar a antiga tradição da Lectio Divina: a leitura assídua das Santas Escrituras, acompanhada da oração, realiza o colóquio íntimo com Deus, que escutamos quando lemos e a quem respondemos na oração com um coração aberto e confiante (cf. DV 25). Esta prática, se eficazmente promovida, levará a Igreja – estou convencido disso – a uma nova primavera espiritual. A pastoral bíblica deve, portanto, insistir de modo especial sobre a Lectio Divina e encorajá-la com métodos novos, cuidadosamente elaborados e de acordo com os nossos tempos. Nunca devemos esquecer que “a tua Palavra é lâmpada para os meus passos e luz para os meus caminhos” (Sal 118, 105)”.
A última Conferência Episcopal Latino Americana e Caribenha faz referência a essa forma de oração como caminho de encontro pessoal com Jesus Cristo, encontro esse de fundamental importância na vida do cristão:
Entre as muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura existe uma privilegiada à qual todos estamos convidados: a Lectio Divina ou exercício de leitura orante da Sagrada Escritura. Esta leitura orante, bem praticada, conduz ao encontro com Jesus - Mestre, ao conhecimento do mistério de Jesus-Messias, à comunhão com Jesus-Filho de Deus e ao testemunho de Jesus-Senhor do universo. Com seus quatro momentos (leitura, meditação, oração, contemplação), a leitura orante favorece o encontro pessoal com Jesus Cristo semelhante ao modo de tantos personagens do evangelho: Nicodemos e sua ânsia de vida eterna (cf. Jo 3,1-21), a Samaritana e seu desejo de culto verdadeiro (cf. Jo 4,1-12), o cego de nascimento e seu desejo de luz interior (cf. Jo 9), Zaqueu e sua vontade de ser diferente (cf. Lc 19,1-10)... Todos eles, graças a este encontro, foram iluminados e recriados porque se abriram à experiência da misericórdia do Pai que se oferece por sua Palavra de verdade e vida. Não abriram seu coração para algo do Messias, mas ao próprio Messias, caminho de crescimento na ‘maturidade conforme a sua plenitude’ (Ef 4,13), processo de discipulado, de comunhão com os irmãos e de compromisso com a sociedade.
Portanto, esse é um tempo novo, onde a Igreja que sempre se nutriu da Palavra de Deus, procura abrir esse rico tesouro a todos que queiram conhecer o plano salvífico de Cristo Jesus, o Senhor, centro de toda Sagrada Escritura.                   
Inclusive, o Santo Padre Bento XVI, ao convocar um Sínodo sobre a Palavra de Deus tinha como um dos seus objetivos “acender a estima e o amor profundo pela Sagrada Escritura, fazendo com que ‘os fiéis tenham amplo acesso’ a ela; renovar a escuta da Palavra de Deus, no momento litúrgico e catequético, nomeadamente com o exercício da Lectio Divina, devidamente adaptada às várias circunstâncias; oferecer ao mundo dos pobres uma Palavra de consolação e de esperança”.
Todos os autores que se referem à leitura orante da Sagrada Escritura põe em evidência os quatro degraus, ou quatro passos dessa antiga tradição espiritual: Leitura, meditação, oração e contemplação.
No site jovensconectados.org.br podemos ler uma explicação dos passos da Lectio Divina:
Leitura (Lectio)
A leitura é um exercício externo, e o grau dos principiantes. Tenhamos, portanto, a humildade de ler a Sagrada Escritura, mesmo se, às vezes, nós temos a pretensão de já conhecê-la. A leitura deve ser desinteressada, gratuita, amorosa e na fé, e requer dedicação de tempo para não ser realizada de maneira superficial.
Para uma boa leitura, é necessário primeiro lançar sobre o texto bíblico um olhar impessoal, analisando a cena descrita, a linguagem utilizada e o contexto histórico e sociocultural. A partir disso podemos inferir o sentido literal da Palavra. Mas a riqueza dos textos bíblicos, no Antigo e no Novo Testamento, de forma implícita ou explícita, sempre permitem-nos um encontro com Jesus, o Verbo do Pai. É o que tradicionalmente se conhece por sentido alegórico (ou cristológico) da Escritura. A Palavra de Deus carrega sempre ainda um sentido moral (ou antropológico), uma lição prática que nos podem conduzir a um comportamento justo. Por fim, toda a Escritura faz-nos entrar, já aqui na terra, na visão do Céu e do Eterno. Podemos assim ler a Palavra de Deus em seu sentido escatológico.
Meditação (Meditatio)
É o ato da inteligência que nos coloca acima dos sentidos. É o grau daqueles que progridem e o dos que já podem meditar a Palavra de Deus. Para que a Palavra possa penetrar e produzir os seus efeitos em nós, é necessário constância e perseverança no exercício de meditação.
É importante ressaltar que a meditação do texto bíblico não se deve limitar ao tempo do exercício da Lectio Divina, mas somos chamados a continuar a meditar a Palavra durante o nosso dia, e mesmo no decorrer de nossos trabalhos e atividades, permitindo à Escritura de realizar um trabalho de frutificação interior em nossa alma.
Oração (Oratio). Prece, oração, que faz entrar no mistério. É o grau dos fervorosos.
A oração é a minha resposta pessoal à leitura da Boa Nova. Depois de ter lido, penetrado, meditado o texto, podemos sentir o desejo de fechar a nossa Bíblia para louvar o Senhor. Agora, a fim de não mais escutar o que o Senhor me diz, mas simplesmente amá -Lo, contemplá –Lo e responder -Lhe. A partir da Palavra viva, nossa oração pode tomar múltiplos aspectos, como o louvor, a ação de graças e o reconhecimento, mas também a contrição do coração, o pedido, a intercessão e a súplica.
Contemplação (Contemplatio). Oração de quietude. É o grau dos bem aventurados, que corresponde à vida mística.
A Contemplação é o que fica nos olhos e no coração, quando acabou a Oração. É fundamentalmente, a concentração da minha atenção, não em sentimentos ou em orações, mas em Jesus Cristo e na minha relação pessoal com Ele. É importante durante a etapa da Contemplação guardar um pequeno trecho da Escritura (um versículo) que mais lhe tenha falado ao coração, para ser levado durante todo o dia.
Ação (Actio): A Palavra de Deus apropriada passa depois para a vida prática, torna-se vida em minha vida e transforma meus atos.
A partir do que li, do que ouvi, meditei, ruminei, contemplei, me deixei penetrar pelo poder da Palavra. Começa a brotar no meu mais profundo, o desejo de seguir as Palavras da Virgem Maria: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 1,5). A ação movida pela Palavra, consiste em fazer da mensagem a própria vida. É válido traçar propósitos claros e realistas dentro de intervalos de tempo razoáveis. A Palavra vivenciada dia após dia, a começar dos pequenos gestos, configura-nos a Jesus e faz-nos avançar no caminho da santidade.



sábado, 23 de março de 2019

lectio Divina - Parte I




Um pouco de história

Como parte do grande movimento bíblico que se deu logo após o Concilio Vaticano II, se tem procurado reaprender essa forma antiga de oração a partir da Sagrada Escritura que comumente se conhece como: Lectio Divina.
No Novo Testamento se encontra esse tipo de experiencia “orante” da Palavra, como por exemplo, no canto de Maria, o Magnificat. Esse hino é inspirado no cântico de Ana (1 Sm 2,1-10) e em muitos outros textos da Sagrada Escritura: “Minha alma engradece o Senhor, e meu espírito exulta em Deus meu Salvador” (Lc 1, 46b-47) conforme Is 61,10; 1 Sm 2,1) apenas para citar um exemplo.
O Antigo Testamento é relido à luz do mistério pascal de Cristo Jesus, o que faz com que a oração de todo o Novo Testamento seja uma consequência da própria relação do novo povo com a Escritura inspirada por Deus  “útil para instruir, para refutar, corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem se torne perfeito, qualificado para toda boa obra” (2 Tim 3,16-17), Escritura essa que o povo aprendeu a guardar em sua vida como um tesouro que se tornou uma verdade “que não se pode deixar de falar” (cf. At 4,20.
A utilização da Palavra como fonte para oração faz parte da experiência das primeiras comunidades que se reuniam em comunidades para ler, escutar e meditar a Sagrada Escritura: “Eles mostravam-se assíduas ao ensinamento dos Apóstolos, a comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2,42)[1]. Na caminhada dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35), o pano de fundo é uma experiência litúrgica da comunidade cristã, celebrando a Eucaristia no dia do Senhor, onde a dificuldade em compreender os acontecimentos chega ao seu fim quando se “Interpreta todas as Escrituras” a luz desse mistério.
Esse costume não é originalmente cristão, mas sim judeu. A leitura orante tem sua inspiração na trajetória do povo que aprendeu a reconhecer “os passos de Deus” em sua caminhada. Um exemplo disso encontra-se no livro de Neemias 8,1-12.  O contexto é a volta do exílio, a reconstrução da cidade de Jerusalém e o renascimento da identidade nacional. Trata-se de um ato litúrgico. A leitura é feita solenemente em seguida explicitada.
Nas sinagogas eram lidos trechos do Antigo Testamento, depois explicadas e interpretadas. Uma confirmação disso é o Targum: um livro de interpretações das passagens lidas na sinagoga.[2]
Logo depois, com os Padres da Igreja a reflexão é marcadamente bíblica. Considerar a Escritura como Palavra de Deus escrita, capaz de mudar a vida de seus ouvintes, consiste no primeiro e principal pressuposto da leitura teológica patrística. Os textos bíblicos circulavam nas comunidades, influenciando a vida dos cristãos e cristãs, formando o conjunto dos escritos Vétero e Neotestamentário, recebido e transmitido por vários grupos eclesiais, constituindo já no final do século II, o mais estimado tesouro da Igreja.
Com Orígenes (184-254), vem o termo Lectio Divina e o uso deste como método. Esse fazia homilia a partir de um texto da Sagrada Escritura lida continuamente durante a semana. Esse autor insistiu muito na importância da leitura divina como base de toda a vida ascética, para uma reta contemplação. Dizia ele que a vida espiritual do cristão é a Escritura lida, meditada, compreendida e vivida.
Na Carta a Gregório, Orígenes recomenda:
“Dedica-te à lectio das divinas Escrituras; aplica-te a isto com perseverança. Compromete-te na lectio com intenção de acreditar e de agradar a Deus. Se durante a lectio te encontrares diante de uma porta fechada, bate e abrir-te-á aquele guardião, do qual Jesus disse: ‘O guardião abri-la-á’. Aplicando-te assim à lectio divina, procura com lealdade e confiança inabalável em Deus o sentido das Escrituras divinas, que nelas se encontra com grande amplitude. Mas não deves contentar-te com bater e procurar: para compreender as coisas de Deus é-te absolutamente necessária a oratio. Precisamente para nos exortar a ela o Salvador nos disse não só: ‘Procurai e encontrareis’, e ‘Batei e servos-á aberta’, mas acrescentou: ‘Pedi e recebereis’” (Ep. Gr. 4). [3]
Sobressai imediatamente o "papel primordial" desempenhado por Orígenes na história da Lectio Divina. O grande Bispo Ambrósio de Milão aprendeu a ler as Escrituras a partir das obras de Orígenes e fez com que o Ocidente conhecesse essa rica tradição.
Jerônimo (340-420), que mantinha em Roma uma escola de Lectio Divina, acentua a dimensão cristólogica e a unidade da Sagrada Escritura, usando a imagem de uma casa com muitos quartos, cuja única chave é o Espírito Santo. À matrona romana, Leta, ele dava estes conselhos para a educação cristã de sua filha:
 “Assegura-te de que estude todos os dias alguma passagem da Escritura. Que acompanhe a oração com a leitura e a leitura com a oração... Que ame os Livros divinos em vez das jóias e os vestidos de seda” (Epístolas 107, 9.12).[4]
 João Cassiano (370-435) enfatiza a relação entre a Palavra e a experiência pessoal:
“Se, por conseguinte, queres chegar à ciência verdadeira das Escrituras, apressa-te a conseguir, primeiro, uma invariável humildade de coração. É ela que te levará à ciência, não a que enche de vento (1 Cor. 8,1), mas a que ilumina, pela perfeição da caridade. É impossível a uma alma impura obter a ciência espiritual”.[5]
Entre os séculos V e VI, essa prática torna-se comum na vida monástica. Um monge Cartuxo chamado Guigo II, organizou esse método em um livro que escreveu intitulado “A escada dos monges”, que apresenta os quatro degraus comumente utilizados: leitura, meditação, oração e contemplação, como a escada que sobe da terra ao céu:
A leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação do espírito. A meditação é uma ação deliberada da mente, a investigar com a ajuda da própria razão o conhecimento duma verdade oculta. A oração é uma religiosa aplicação do coração a Deus, para afastar os males ou obter o bem. A contemplação é uma certa elevação da alma em Deus, suspensa acima dela mesma, e degustando as alegrias da eterna doçura.
            O dizia ainda:
O primeiro degrau é dos principiantes; o segundo, dos que progridem; o terceiro, dos fervorosos; o quarto, dos bem-aventurados. Qual primeiro fundamento vem a leitura. Ela fornece a matéria e nos leva à meditação. A meditação, por sua vez, perscruta com maior diligência o que se deve desejar e, como que cavando, acha e mostra o tesouro. Mas, como não pode por si mesma obtê-lo, leva-nos à oração. A oração, elevando-se a Deus com todas as suas forças, obtém o tesouro desejável, a suavidade da contemplação. Sobrevindo a contemplação, ela recompensa o trabalho dos três degraus referidos, embriagando. A alma sedenta com o orvalho da doçura celeste. A leitura é feita segundo um exercício mais exterior; a meditação, segundo uma inteligência mais interior; a oração, segundo o desejo; a contemplação passa acima de todo sentido.[6]



[1] “Instrução para os neoconvertidos, nas quais as Escrituras eram explicadas à luz dos eventos cristãos, não mais como proclamação da boa nova a não-cristãos” (nota da Bíblia de Jerusalém, e).
[2] Na sinagoga o ensinamento da Torá era (é) feito principalmente através do Targum (a tradução do texto bíblico na língua conhecida da assembléia, versículo por versículo) e da Midrash, método de exegese usado pelos escribas, com a finalidade de encontrar o sentido oculto dos trechos da Torá, revelando seu sentido profundo e atual. É um método definido como espiritual, porque não parte de exigências racionais, mas vitais, existenciais. O que dá legitimidade à interpretação é a maturidade da experiência espiritual. Cf. Sante, Carmine di. Israel em oração. São Paulo, Paulus, 1989 p. 134-5.
[3]  http://www.veritatis.com.br/article/5010
 [4] http://www.veritatis.com.br/article/4995
[5] http://www.ecclesia.com.br/Biblioteca/monaquismo/xiv_conferencia_dos_padres_do_deserto.html
[6] https://www.avemaria.com.br/loja/images/pdf/445.pdf

quinta-feira, 21 de março de 2019

O discípulo orante




“Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Mas como poderiam invocar aquele em que não creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador? E como podem pregar se não foram enviados? Conforme está escrito: Quão maravilhosos são os pés dos que anunciam boas notícias. Mas não obedeceram ao Evangelho. Diz, com efeito, o profeta Isaías: Senhor, quem acreditou em nossa pregação? Pois a fé vem da pregação e a pregação é pela palavra de Cristo” (Rm 10,13-17).

A experiência fundamental de toda a Sagrada Escritura é uma experiência de salvação. O conceito da palavra “salvação” vem do grego sötëria de onde a tradução nos remete a cura, remédio. No latim, salus tinha um significado muito particular na época. Salus é uma palavra que literalmente significa saúde. É o nome da deusa, filha de Esculápio, que possuía um templo no monte Quirino.  No tempo de Paulo, a soteria, do verbo sözö [salvar do mal, conservar do mal, preservar, socorrer] é o substantivo que tem como significado principal o de salvamento ou libertação de um perigo que ameaça a vida. Nos evangelhos, a palavra soteria aparece quatro vezes em Lucas e uma vez em João. Das quatro vezes que o termo aparece em Lucas, três delas pertencem ao canto de Zacarias e a outra é a declaração feita a Zaqueu de que a salvação entrou na sua casa (19,9). Em João, Jesus declara que a salvação provém dos judeus e não dos samaritanos [a salvação era Ele mesmo] (Jo 4, 22). Em todos os casos, soteria grego é traduzido por salus latino. Soteria aparece em Paulo dezessete vezes, das quais cinco em Romanos, e é sempre traduzido pelo salus latino. E na carta aos romanos, sempre tem um significado de salvação, como uma liberação escatológica do mal que é por assim dizer, a separação do amor de Deus. E quem opera essa salvação do homem é Jesus, a quem o anjo em Belém chamou no dia de seu nascimento Soter, que é Cristo Senhor.
A nossa salvação se na morte e ressurreição de Cristo Jesus: “Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando ainda éramos pecadores. Quanto mais, então, agora, justificados por seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Pois quando éramos inimigos fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho, muito mais agora, uma vez reconciliados, seremos salvos por sua vida” (Rm 5,8-10). É a partir desse mistério que se compreende toda a Sagrada Escritura, pois é onde se revela a plenitude da revelação: “Então abriu-lhes a mente para que entendessem as Escrituras” (Lc 24,45).
A aliança que Deus faz com o homem de Adão a Noé, de Abraão a Davi, de Amós a João Batista se realizou de modo definitivo no mistério pascal de Cristo Jesus, Nosso Senhor, que é o dom do Pai que, gratuitamente, se oferta por nossa Salvação. É este anúncio que Pedro faz no dia de Pentecostes a todos os ouvintes que participavam da festa naquela ocasião: “A este Jesus (que foi crucificado), Deus o ressuscitou, e disto nós somos testemunhas. Portanto, exaltado pela direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou, e é isto o que vedes e ouvis... Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes” (At 2,32-33.36).
Essa é a nova aliança em seu sangue, que por meio do dom do Espírito Santo se torna viva na história, na mesa onde se celebra a Palavra e a Eucaristia. O homem quando reza cria uma relação de aliança, que é como em toda a história da salvação, uma ação de Deus e do homem. Essa disposição interior vem do coração, que é o lugar do encontro, é o lugar da decisão. E é basicamente isso que acontece na oração: um exercício de um coração disposto a encontrar-se com Deus.
Antes de qualquer coisa, o discípulo deve sentir-se salvo por Cristo Jesus. Ele mesmo deve fazer o caminho de Paulo, de Tarso a Damasco, de Damasco a Roma, caminho esse que passa pela conversão. No encontro com o Senhor, a vida daquele que anuncia “boas novas” deve ser transformada, pois de outro modo, não se pode dar um testemunho autêntico de Cristo. A sua missão se dá a partir do conhecimento de que a Palavra de Deus tem o poder de salvar o homem e essa fé deve “penetrar como uma espada de dois gumes” (Hb 4,12b), tornando a sua vida um reflexo daquele que o salvou.
A economia da revelação tem como projeto a salvação do homem e com ele, de toda a criação. Em cada linha da Escritura se encontra esse projeto. É no chão da vida tão querida por Deus que se cultiva o desejo mais profundo do Senhor: salvar o homem. Aquele que anuncia a Palavra é um mensageiro, que reconhece os desafios de sua missão, mas que procura a todo custo realizar o serviço para o qual foi chamado porque sabe “que como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam, sem terem regado a terra, tornando-a fecunda e fazendo germinar, dando semente ao semeador e pão ao que tem fome, tal ocorre com a Palavra que sai da minha boca: ela não volta a mim sem efeito; sem ter cumprido o que eu quis realizado o objetivo de sua missão” (Is 55,10-11).
O testemunho da Sagrada Escritura é da verdade que Deus revela para nos salvar. Palavra de Deus que comunica vida ao homem, que abre o caminho para realização integral de toda criatura. Pois Deus “quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Tm 2,4), “verdade” (Jo 14,6) que é o próprio Cristo, que veio para salvar “o homem todo e todos os homens”. É preciso que Cristo seja anunciado e o díscipulo acolhe esse salutar chamado porque reconhece que não há outro caminho de salvação do gênero humano.
Toda a Palavra de Deus é comunicação. Desde a sua primeira página: “Deus disse” (Gn 1,3) até a última: “O Espírito e a esposa dizem: vem” (Ap. 22,17) Ele se comunica para estabelecer uma relação de comunhão e fazer com que a criatura reconheça o Criador que o formou “a sua imagem e semelhança” (Cf. Gn1,26). Nessa comunicação, Deus revela a verdade sobre si mesmo e sobre o homem, em um diálogo que chega ao seu ápice na Encarnação do próprio Filho que “revela o homem ao próprio homem”, a fim de que esse chegue à felicidade. Sua Palavra se torna palavra humana, cria uma cultura de reciprocidade que se opõe à idolatria onde os ídolos “têm boca, mas não falam; tem olhos mas não vêem; têm ouvidos, mas não ouvem; têm nariz, mas não cheiram” (Sl 115,5-6). O Deus de Israel sempre espera uma resposta do homem, pois ele é “Palavra”. Toda comunicação é uma forma de transmitir uma mensagem. A Bíblia é a nossa mensagem. Tudo o que se faz, a partir de então, é tornar essa mensagem conhecida.
Por meio da ação do Espírito Santo, aquele que recebe a Palavra como uma comunicação da verdade faz um caminho de conversão eficaz, onde a divina mensagem se torna “uma lâmpada para os seus pés, luz para o caminho” (cf. Sl 119,105) dando ao crente condição de um reto discernimento sapiencial da realidade e a capacidade não só de ouvir, mas de pôr em prática a Palavra (Cf. Lc 8,21).
O anúncio que se faz é anúncio da Palavra de Deus. Essa é a mensagem que deve ressoar na vida do discípulo de modo que ele seja a própria “Palavra em movimento”, um testemunho vivo daquilo que crê. E ele deve crer sem dúvida, na Palavra de Cristo, acolhida como verdade que capaz de operar uma verdadeira metamorfose na sua vida.
Na tradição de Israel o Shemá (ouve) é como um credo rezado pelo povo em que se afirma a vocação de ser unicamente de Deus, no amor mútuo que inclui obrigação de “andar em seus caminhos” (Dt 10,2) e servi-lo na medida do mesmo amor: “Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh! Portanto, amarás a Iahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração! (Dt 6,4-6). No Novo Testamento a Palavra que se deve ouvir é o próprio Cristo: “Este é o meu Filho amado, ouvi-o” (Mc 9,7).
Esse verbo, na língua hebraica (Shemá), tem um sentido bem mais amplo. Significa também escutar, entender, prestar atenção, discernir e examinar. Por isso, para o autor sagrado, esse imperativo não diz respeito a um exercício de audição, mas um envolvimento com aquilo que se ouve. De outro modo, aquele que ouve a voz de Deus por meio da Palavra, assume as exigências da própria Palavra.
É a voz do Filho que se ouve em toda Sagrada Escritura, porque no mistério de sua vida toda revelação chega à plenitude. No belo quadro da transfiguração a figura de Moisés e Elias nos dá a certeza de que em Cristo Jesus, a lei e os profetas chegam à perfeição “porque em dar-nos, como deu seu Filho, que é a sua palavra única (e outra não há), tudo que nos falou de uma vez nessa palavra, e nada mais tem a falar, (...) pois o que antes falava por parte aos profetas, agora nos revelou inteiramente, dando-nos o tudo que é seu filho.” (CIC 65). É a voz de Cristo que ecoa por toda a Sagrada Escritura, pois “Com efeito, nos livros sagrados o Pai que está nos céus vem carinhosamente ao encontro de seus filhos e com  eles fala” (CIC 104). Fala por meio do seu Filho, a quem devemos reconhecer como Senhor.
A essa voz se deve uma obediência de fé, que quer dizer, submeter-se livremente a palavra ouvida. Todas as Escrituras apontam para Cristo. Ele é o Filho muito amado do Pai, a quem devemos escutar e seguir como discípulos. A Palavra é uma declaração de amor de Deus por nós. Ele fala conosco como um amigo. São Bernardo afirma que, no plano da Encarnação do verbo, Cristo é o centro de todas as Escrituras. A Palavra de Deus, que já se ouvia no Antigo Testamento, tornou-se visível em Cristo.
“Que a Palavra habite em vós” (Cl 3,16). De que forma isso acontece? Por meio da leitura orante das Escrituras, onde através da ação do Espírito Santo, Cristo se forma em nós. De outro modo o discípulo não será capaz de anunciar a Palavra de Deus. Ele deve criar uma relação de amizade e, por meio desse encontro “entre amigos”, cultivar um “coração bíblico”, com uma disposição interior para ser “praticante da Palavra e não simples ouvintes” (Cf. Tg. 1,22a).
Ele deve visitar o jardim do Éden, com os patriarcas acender uma fogueira enquanto descansa da caminhada, deixar sua casa e ir ao encontro da terra da promessa, marchar com Moisés pelo deserto e renovar junto com os profetas a esperança depois de um doloroso tempo no exílio. Sentar a mesa com Marta e Maria. Está ao lado da Mãe de Jesus e João, o discípulo amado, na cruz do calvário e alegrar-se com o ressuscitado na manhã sem ocaso. Aquele que é o mensageiro que traz “boas notícias” deve ter familiaridade com a Sagrada Escritura, fazer dela o seu alimento. Aproximar-se da mesa onde se serve a própria Palavra viva. Como já dizia São Jerônimo: “A carne do Senhor é verdadeira comida e o seu sangue verdadeira bebida; é esse o verdadeiro bem que nos é reservado na vida presente: alimentar-nos da sua carne e beber o seu sangue, não só na Eucaristia, mas também na leitura da Sagrada Escritura. É, de fato, verdadeira comida e verdadeira bebida a Palavra de Deus que se obtém do conhecimento das Escrituras”.
A leitura orante da Bíblia quer ser um caminho para o conhecimento de Deus e de seu plano de salvação em Jesus Cristo através das Escrituras onde todos podem encontrar nesta forma de leitura um meio simples e prático para aceder pessoal ou comunitariamente a Palavra de Deus.
Nesse contexto, é preciso em primeiro lugar se alimenta do pão da Palavra, se aproxima da mesa da refeição, onde faz eco o velho ditado: “Saco vazio não se põe em pé!”. Mas como a sua missão é caminhar no desejo de tornar Deus conhecido, ele leva consigo uma reserva desse mesmo pão, para alimentar os que têm fome e sede de Deus. Ele repete ao povo o texto da Escritura que diz: “Quem vem a mim (diz o Senhor), nunca mais terá fome, e o que crê em mim nunca mais terá sede.” (Jo 635b). Em sua caminhada não vai ser difícil encontrar quem precise ser alimentado do pão vivo que é o próprio Senhor ressuscitado. Ao parafrasear o que diz João sobre o Pão da vida (Jo 6), podemos afirmar que quem não comer e beber da carne transformada em Palavra não tem a vida em si mesmo, se torna “saco vazio”, que logo cairá sem forças.
Ao anunciar a Palavra do Deus vivo o discípulo se colocar no lugar daquela criança que levou pra viagem só cinco pães e dois peixinhos (Jo 6,1-15). André, o irmão de Simão diz assustado, “mas o que é isso para tantas pessoas?” (vs. 9). Nós muitas vezes nos fazemos a mesma pergunta. Mas o que é essa Palavra pra uma multidão com fome e sede de Deus? Imagine se essa criança não levasse na bolsa a sua provisão! Imagine se você, não levar consigo o pão da Palavra capaz de saciar a fome do povo? Todos podem morrer de fome. Eu não quero pensar em tamanha tristeza!
A leitura orante da Bíblia indica um duplo caminho que conduz ao mesmo destino. O primeiro é de reconhecimento e acolhida. “Com efeito, diante de mim se dobrará todo joelho, toda língua jurará por mim, dizendo: só em Iahweh há justiça e força” (Is 45,23). O Apóstolo Paulo no hino aos cristãos de Filipos canta com a mesma inspiração: “Por isso Deus soberanamente o elevou e lhe conferiu o nome que está acima de todo o nome, a fim de que ao nome de Jesus todo o joelho se dobre nos céus, sobre a terra e debaixo da terra, e que toda a língua proclame que o Senhor é Jesus Cristo para a glória de Deus Pai” (Fl 2,9-11). Isso é reconhecimento, um sentimento de gratidão por algo recebido. E o que recebemos de Deus? O dom da salvação! Esse é o dom gratuito de Deus que nós resgatou “por um alto preço” (Cf. 1 Cor 6,19).
Uma pessoa acaba de bater a sua porta. O que você faz? Abre. Deus espera que a porta da nossa vida esteja aberta porque “ele quer fazer uma refeição conosco” (Cf. Ap. 3,20). A leitura orante da Bíblia é uma experiência de intimidade. Para o judeu, sentar a mesa é uma relação de amizade, de conhecimento um do outro. Ainda hoje, não se convida qualquer pessoa pra fazer uma refeição em sua casa. Quando você faz qualquer refeição fora de casa, se você senta ao lado de uma pessoa que não conhece o silêncio se torna o nosso companheiro porque falta intimidade. O que se espera na leitura orante, é que se crie uma relação de familiaridade, onde Deus se torne o “nosso grande amigo”. A cada dia, você tem a oportunidade de receber em sua vida o “Emanuel”, Deus conosco e é isso que dar sentido a nossa vida.
O outro caminho, e não menos importante, é o da oferta. Durante o sermão da montanha, Jesus faz um chamado, que faz parte da vocação de todo batizado: “Que brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam vossas boas obras e glorifiquem o Pai que está nos céus” (Mt 5,16). Quanto mais fogo na madeira, maior será o clarão! Devemos ser cheio do Espírito Santo, e como madeira, deixar se queimar, pra que maior seja o clarão do amor de Deus. Nesse sentido a Sagrada Escritura ocupa um lugar de suma importância porque o discípulo não anuncia a si mesmo, sua luz não é própria mais sim uma irradiação daquele que é a “luz do mundo”. A obra realizada evidencia essa ação poderosa de Deus cujo testemunho se faz ouvir através daquele que se oferta. E quanto maior a oferta, maior o dom. Ao fazer a leitura orante da Bíblia crescemos nessa “experiência” e é isso que faz a diferença!











segunda-feira, 18 de março de 2019

A nossa alma suspira por Deus



A nossa alma suspira por Deus (Cf. Sl 41), e é através da oração que sentimos a alegria desse encontro. Não importa como: sentado, em pé, de joelhos ou prostrado ou que gesto a acompanha, orar é um movimento da criatura em direção ao seu criador. Na oração o ser humano adora com submissão, louva com confiança, se arrepende, pede, súplica, intercede. Às vezes sussurra, grita, silencia. Seja juntando as mãos, elevando ou abrindo os braços, orar se torna fundamental para crescer na intimidade com nosso “Divino Amigo”.
Devemos guardar um “tempo privilegiado” para dialogar com aquele que está sempre pronto a nos ouvir. Faça isso é você vai visitar o jardim do Éden, com os patriarcas acender uma fogueira enquanto descansa da caminhada, ir ao encontro da terra da promessa, marchar com Moisés pelo deserto e renovar junto com os profetas a esperança depois de um doloroso tempo no exílio. Sentar à mesa com Marta e Maria. Está ao lado da Mãe de Jesus e João, o discípulo amado, na cruz do calvário e alegrar-se com o ressuscitado na manhã sem ocaso.
Oração é uma palavra usada cerca de setenta vezes no evangelho de Lucas! É o evangelho que mais apresenta Jesus orando, por isso, não podemos fechar os ouvidos a esse convite. Só Lucas coloca Jesus rezando no batismo (Lc 3,21), após o milagre (Lc 5,16), antes da escolha dos Doze (Lc 6,12) e da confissão de Pedro (Lc 9,18), no momento da transfiguração (Lc 9,28-29) e no Getsêmani (Lc 22,46). Esse evangelho insiste na necessidade de ser perseverante na oração (Lc 11,5-8; 18,1), especialmente nos momentos de dificuldades (Lc 22,40.46). 
A vida do povo de Israel se transformou em uma liturgia. O templo é o lugar onde o culto cria as condições para o relacionamento com Deus fazendo com que a oração se transforme em um verdadeiro " serviço de coração"(avodá shebalev), tornando-se assim, uma maneira de expressar seu amor por Deus. É justamente no templo que Maria encontra o jovem Jesus, como ele mesmo diz, “ocupado com as coisas do Pai” (Cf. 2,29).
            Assim, hoje, a Igreja liturgiza os grandes acontecimentos da vida através dos sacramentos: nascimento, noivado, casamento, morte, maturidade, vocação. Os demais acontecimentos, não menos importante, têm uma liturgia própria onde se abençoa, “a oração de benção é a resposta do homem aos dons de Deus: uma vez que Deus abençoa, o coração do homem pode bendizer aquele que é a fonte de toda a benção” (CIC 626). Somos, portanto, chamados a orar nas semeaduras, plantações, colheitas, tempestades, períodos de fome, guerras. Se prevê na liturgia um grande número de pessoas como governantes, políticos, refugiados, exilados, doentes, perseguidos, animais, casas, etc., além de objetos como prédios, altares, pão e vinho, instrumentos. A oração litúrgica marca tempos, espaços, objetos e pessoas dando a nossa vida um ritmo sobrenatural.
            Não podemos deixar de dizer que Jesus privilegiava os momentos a sós para orar como podemos ver: "Mas ele costumava retirar-se a lugares solitá­rios para orar" (Lc 5,16);"Naqueles dias, Jesus retirou-se a uma montanha para rezar, e passou aí toda a noite orando a Deus" (6,12); "Um dia, num certo lugar, estava Jesus a rezar" (11,1). Assim diz o Catecismo, “Não é, porventura, ao contemplar primeiro o seu Mestre em oração, que o discípulo de Cristo sente o desejo de orar? Pode então aprendê-la com o mestre da oração. É contemplando e escutando o Filho que os filhos aprendem a orar ao Pai”. (CIC 2601).
            Algumas indagações para ajudá-lo a refletir:
O que é oração pra você? Como está a sua oração? Quanto tempo tem dedicado à sua oração? Esse tempo tem sido bem aproveitado? Você tem dedicado tempo  a sua oração comunitária? Tem se sentido motivado para se encontrar e orar com seus irmãos e irmãs? Tem valorizado esses momentos de vida comunitária?