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domingo, 26 de abril de 2020

A casa de Emaús




"Nesse mesmo dia, dois discípulos caminhavam para uma aldeia chamada Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios.

Que cidade é essa chamada Emaús? Não existe um consenso quanto a isso. Bento XVI fez uma interpretação importante: “existem várias hipóteses, e isto é sugestivo, porque nos deixa pensar que Emaús representa na realidade todos os lugares: o caminho que nos conduz é o caminho de todos os cristãos, aliás, de todos os homens”. (Angelus, 6 de abril de 2008). Por isso, posso dizer que Emaús representa as nossas casas e nessas nossas idas e vindas  de cada dia, devemos esperar pelo nosso companheiro de viagem, Jesus o Senhor.
Eles se distanciavam de Jerusalém, o que no plano teológico de Lucas significava dizer que eles se afastavam da salvação. Por isso mesmo depois que os dois discípulos reconhecem Jesus, eles voltam para Jerusalém. Não podemos nos afastar de nossa casa, pois é a partir de lá que o Senhor quer manifestar a salvação ao mundo.
Iam falando um com o outro de tudo o que se tinha passado. Enquanto iam conversando e discorrendo entre si, o mesmo Jesus aproximou-se deles e caminhava com eles. Mas os olhos estavam-lhes como que vendados e não o reconheceram. Perguntou-lhes, então: De que estais falando pelo caminho, e por que estais tristes?
O Mestre se aproxima dos discípulos. Ele se preocupa com a vida deles, “O que estão discutindo pelo caminho?”. O Cristo ressuscitado quer caminhar ao nosso lado, quer transformar nossa tristeza em alegria. O que os discípulos testemunharam em Jerusalém os marcou profundamente. Eles discutiam e se lamentavam por causa do que havia ocorrido em Jerusalém. Por isso eles caminhavam com o “rosto sombrio”. Os dolorosos acontecimentos os adoeceram e o Mestre vendo isso, veio ao encontro deles para curá-los, pois sua alma estava abatida. Sem esse encontro eles continuariam a se afastar do caminho que transforma, da verdade que liberta e da vida que renova.
A nossa sociedade tem sido uma fonte de adoecimento por causa da forma que vivemos. As cidades hoje têm inchado devido o fenômeno do êxodo rural o que fez crescer os centros urbanos que tem o seu ritmo próprio quase sempre frenético. Por todos os lados vemos pessoas esgotadas por causa do trabalho exaustivo, deslocamento, precariedade dos serviços essenciais, preocupações, satisfação de prazeres de forma desordenada, status, regime competitivo, etc. Tudo isso impõe uma grave necessidade de cura.
É o sacrifício de Cristo que derrama sobre nós o remédio capaz de nos curar de todas as doenças, “fomos curados graças as suas chagas” (Is 53,5). Devemos nos aproximar daquele que é o “médico dos médicos” para que nossa saúde seja restabelecida.
Um deles, chamado Cléofas, respondeu-lhe: És tu acaso o único forasteiro em Jerusalém que não sabe o que nela aconteceu estes dias? Perguntou-lhes ele: Que foi? Disseram: A respeito de Jesus de Nazaré... Era um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo. Os nossos sumos sacerdotes e os nossos magistrados o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. Nós esperávamos que fosse ele quem havia de restaurar Israel e agora, além de tudo isto, é hoje o terceiro dia que essas coisas sucederam. É verdade que algumas mulheres dentre nós nos alarmaram. Elas foram ao sepulcro, antes do nascer do sol; e não tendo achado o seu corpo, voltaram, dizendo que tiveram uma visão de anjos, os quais asseguravam que está vivo. Alguns dos nossos foram ao sepulcro e acharam assim como as mulheres tinham dito, mas a ele mesmo não viram.
O que tem acontecido em nossos dias? Vemos um mundo em constante transformação que tem atingido as categorias mais profundas de compreensão da vida criando novas lógicas. Assistimos um mundo marcado pela comunicação global que rompeu fronteiras abrindo a possibilidade de novos conhecimentos e expondo certa superficialidade nas relações. Supervalorizamos nossas emoções, sonhos e projetos pessoais criando dificuldades de perceber que fazemos parte de uma teia que nos liga uns aos outros. Queremos soluções em curto prazo o que impede a muitos de planejar o futuro. A violência tem se institucionalizado, e o poder paralelo das facções e do narcotráfico tem imposto o terror. Nessa breve analise de conjuntura não podemos deixar de mencionar que estamos envoltos em uma sociedade erotizada que mudou as relações entre homens e mulheres.
Em meio a tudo o que foi dito, tenho que anunciar uma grande tragédia: estamos cegos! Não enxergamos mais a Deus devido às muitas luzes que se acenderam em todos os lugares. Luzes de paixões, de individualismo, de prazeres e divertimentos, de tecnologias, de poder e riqueza. Por vezes não são as luzes e sim a escuridão que tem cegado a muitos por causa das tragédias, corrupção, das múltiplas formas de violência, da desilusão e do desespero, falta das condições básicas para se viver. Isso tem nos impedido de vê que o Mestre continua caminhando ao nosso lado, que ele é a verdadeira luz que dissipa toda a escuridão. Nossos olhos precisam se abrir!
Jesus lhes disse: Ó gente sem inteligência! Como sois tardos de coração para crerdes em tudo o que anunciaram os profetas! Porventura não era necessário que Cristo sofresse essas coisas e assim entrasse na sua glória? E começando por Moisés, percorrendo todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava dito em todas as Escrituras. Aproximaram-se da aldeia para onde iam e ele fez como se quisesse passar adiante. Mas eles forçaram-no a parar: Fica conosco, já é tarde e já declina o dia. Entrou então com eles. Aconteceu que, estando sentado conjuntamente à mesa, ele tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e serviu-lho. Então se lhes abriram os olhos e o reconheceram...mas ele desapareceu. Diziam então um para o outro: Não se nos abrasava o coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?
O dom sagrado da hospitalidade forçou Jesus a entrar. Eles se aproximam da mesa. Todos os dias nos aproximamos da mesa pra fazer uma refeição. Temos fome e por isso buscamos nosso pão de cada dia. O nosso corpo tem necessidade de alimento que o sustente. Você já pensou que a sua alma também precisa de alimento e que se ela não “comer”, vai enfraquecer até morrer? Às vezes não nos damos conta da necessidade do “alimento que vem do alto”, que sacia a nossa fome de eternidade. Tornar a nossa vida capaz das lutas diárias depende do bom alimento que recebemos.
            Chega uma hora do dia em que o nosso corpo diz: “estou com fome” e o que você faz? O alimenta se não ele vai continuar lhe “aperiando” até você saciar sua vontade. Você já pensou em tantas famílias que ao chegar essa hora nada tem pra comer? Isso é algo que não gostamos nem de pensar, mas que infelizmente é uma triste realidade. Aquilo que é básico escapa das nossas mãos e a fome se torna a penosa companheira. Acredito que exista também uma multidão incontável de pessoas que estão com fome de Deus, fracas, debilitadas e agonizantes e que não conseguem sequer sair do seu lugar, por ser tão grande o vazio de suas almas.
            Em outra ocasião Jesus diz: “Eu sou o pão da vida...”. Muitos que o acompanhavam para ouvi-lo tinham a sua provisão na bolsa, portanto, não estavam ali porque precisavam do pão amassado da terra, mas sim do pão da Palavra, porque recordavam o que dizia o autor sagrado na Torá: “Não só de pão vive o homem, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus”.
            Os discípulos de Emaús confessam estupefatos que o seu coração ardia quando o Senhor lhes explicava as Escrituras. O nosso lar precisa se transformar em “casa da Palavra”, lugar onde o alimento das Sagradas Escrituras nos nutre, revigora e anima. Esse é um verdadeiro banquete que  somos convidados a saborear, para depois de saciados, testemunhar sua força.
            Os pais têm como grande preocupação de dar aos seus filhos o pão de cada dia. Com isso eles podem crescer fortes, enfrentar com mais vigor as muitas lutas da vida. Mas a partir da vocação cristã a que foram chamados, os pais não podem deixar de dar aos filhos a Palavra de Deus como alimento que sustentará toda a casa ao longo da sua jornada. Os pais devem ter presente a Palavra que afirma que toda “Escritura é útil para instruir, para refutar, corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem se torne perfeito, qualificado para toda boa obra” (2 Tim 3,16-17).
Hoje vemos o esforço de muitos pais para educar seus filhos na fé que receberam e isso causa um grave conflito no mundo em que vivemos, um verdadeiro choque de “mentalidades”. 
Brevemente quero apontar para a importância de os pais assumirem radicalmente a educação dos filhos. Essa é sua primeira tarefa. Eles não podem terceirizar aquilo que é sua “obrigação”. Muitos colaboram com a missão de educar (escola, igreja, amigos...), mas qualquer um que queira educar sem a participação dos pais corre um grande risco de fracassar. 
            A educação é um caminho de conhecimento. Quem educa tem por objetivo ser um “pedagogo”, ou seja, alguém que conduza o outro ao conhecimento da verdade. Em um lar onde reina o amor, a paz e o perdão a criança vai reconhecendo a cada dia aquilo que torna a vida mais humana. Isso pode parecer obvio, mas a educação é uma questão cultural. Uma criança pode crescer crendo que “negros” são inferiores aos “brancos”, só por causa da cor da sua pele. Ou que todo índio é “preguiçoso”. Ela pode alimentar em si mesma o ódio, a indiferença, exclusão ou preconceitos. Essa tem sido uma forma de “educar”, em alguns contextos sociais. Por isso mesmo, não podemos deixar de educar na fé tendo como exemplo o jovem Jesus “que crescia em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52). Assim, os filhos poderão assumir os critérios da Palavra para fazer suas escolhas.
            Emaús é nossa casa, portanto, devemos insistir com o Senhor “fica conosco”. Existem três mesas que não podemos deixar de sentar para comer: a mesa da Eucaristia, a mesa da Palavra e a mesa da nossa casa.
            Na mesa da Eucaristia devemos aprender a partir e repartir, a se doar, a fazer a oferta do tempo, entrando no ritmo “kairológico”. Na mesa da Palavra devemos aprender a ouvir, conversar, meditar. Ler a vida nas linhas e entrelinhas da experiência testemunhada na Sagrada Escritura, deixar o coração se abrasar, pegar fogo para incendiar a todos com o amor divino. Na mesa da nossa casa devemos comer com gratidão, afinal, o alimento recebido é fruto da terra e do trabalho do homem e da mulher. Precisamos sorrir, servir, ouvir, dividir. Existem pais e filhos famintos, esposas e esposas famintas, por isso, comam, se deleitem, se regozijem! Em cada mesa, é  o Senhor mesmo que nos espera. 

quarta-feira, 15 de abril de 2020

A Escada do claustro


Carta de Dom Guigo1, Cartuxo,
ao Ir. Gervásio, sobre a vida contemplativa

Ao seu dileto irmão Gervásio, o Ir. Guigo: o Senhor seja o seu deleite.
Amar-te, irmão, é para mim uma dívida, pois foste tu que, primeiro, começaste a me amar. E sou obrigado a te responder, porque, anterior, tua carta me convida a escrever-te.
Proponho-me, assim, a te transmitir certas coisas que pensei sobre o exercício espiritual dos monges, a fim de que possas julgar e corrigir meus pensamentos a propósito de um assunto que tu melhor conheces por experiência, do que eu pela reflexão.
É justo que eu te ofereça, em primeira mão, as primícias do meu trabalho. Pois convém que colhas os primeiros frutos da recente plantação que, em louvável furto, subtraíste à servidão do Faraó e à mole servidão, e colocaste no exército em ordem de batalha, enxertando sabiamente na oliveira o ramo habilmente cortado da oliveira selvagem (cf. 81144,2; Ex 13,14; Ct 6,3.9 e Rm 11,17.24).

II
Os quatro degraus

Um dia, ocupado no trabalho manual, comecei a pensar no exercício espiritual do homem. E eis que, de repente, enquanto refletia, se apresentaram a meu espírito quatro degraus espirituais: a leitura, a meditação, a oração, a contemplação.
Esta é a escada dos monges, que os eleva da terra ao céu. Embora dividida em poucos degraus, ela é de imenso e incrível comprimento, com a ponta inferior apoiada na terra, enquanto a superior penetra as nuvens e perscruta os segredos do céu (cf. Gn 28,12).
Estes degraus, assim como são diversos em nome e em número, também se distinguem pela ordem e o valor.
Se alguém examina diligentemente suas propriedades e funções, o que produz cada um deles para nós, e como diferem e se hierarquizam entre si, achará pequeno e fácil por sua utilidade e doçura todo o trabalho e esforço que lhes dedicar.
A leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação do espírito.
A meditação é uma ação deliberada da mente, a investigar com a ajuda da própria razão o conhecimento duma verdade oculta.
A oração é uma religiosa aplicação do coração a Deus, para afastar os males ou obter o bem. A contemplação é uma certa elevação da alma em Deus, suspensa acima dela mesma, e degustando as alegrias da eterna doçura.
Notada, assim, a descrição dos quatro degraus, resta-nos ver a função de cada um em relação a nós.

III
Qual a função de cada um dos citados degraus

A leitura procura a doçura da vida bem-aventurada, a meditação a encontra, a oração a pede, a contemplação a experimenta.
Por isso o Senhor mesmo diz: Buscai e encontrareis, chamai e se vos abrirá. Buscai lendo e encontrareis meditando, chamai orando e abrisse-vos contemplando.2
A leitura, de certo modo, leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e tritura, a oração consegue o sabor, a contemplação é a própria doçura que regala e refaz.
A leitura está na casca, a meditação na substância, a oração na petição do desejo, a contemplação no gozo da doçura obtida. Para que se possa ver isto de modo mais expressivo, suponhamos um exemplo entre muitos.

IV
A função da leitura

À leitura, eu escuto: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (Mt 5,8).
Eis uma palavra curta, mas cheia de suaves sentidos para o repasto da alma. Ela oferece como que um cacho de uva. A alma, depois de o examinar com cuidado, diz em si mesma: "Pode haver aqui algum bem, voltarei ao meu coração e tentarei, se possível, entender e encontrar esta pureza. Pois é preciosa e desejável tal coisa, cujos possuidores são ditos bem-aventurados, e à qual se promete a visão de Deus, que é a vida eterna, e que é louvada por tantos testemunhos da Sagrada Escritura".
Desejosa de explicar mais plenamente a si mesma esta coisa, começa a mastigar e a triturar essa uva, e a põe no lagar, enquanto excita a razão a procurar o que é e como pode ser adquirida tão preciosa pureza.

V
A função da meditação

Começa, então, diligente meditação. Ela não se detém no exterior, não pára na superfície, apóia o pé mais profundamente, penetra no interior, perscruta cada aspecto.
Considera, atenta, que não se disse: Bem-aventurados os puros de corpo, mas, sim, "os puros de coração". Pois não basta ter as mãos inocentes de más obras, se não estivermos, no espírito, purificados de pensamentos depravados. Isto o profeta confirma por sua autoridade, ao dizer: Quem subirá o monte do Senhor? Ou quem estará de pé no seu santuário? Aquele que for inocente nas mãos e de coração puro (Sl 24,3-4).
Depois ela considera quanto o próprio profeta deseja essa pureza, ao orar: Cria em mim, Ó Deus, um coração puro (Sl 51,12) e ainda: Se olhei a iniqüidade no meu coração, o Senhor não me ouvirá (Sl 66,18).
A meditação pensa em como era o bem-aventurado Jó solícito por essa guarda, pois dizia: Fiz um pacto com os meus olhos para não pensar em nenhuma virgem (Jó 31,1). Eis como se dominava o santo homem . que fechava seus olhos para não ver o que é vão, evitando olhar imprudentemente o que depois desejaria contra a sua vontade.
Depois de ter refletido sobre esses pontos e outros semelhantes no que toca à pureza do coração, a meditação começa a pensar no prêmio:
Como seria glorioso e deleitável ver a face desejada do Senhor, mais bela do que a de todos os homens (Sl 45,3), não mais abjeta e vil (cf. Is 53,2), não mais tendo a aparência com que o revestiu sua mãe, mas envergando a estola da imortalidade, e coroado com o diadema que seu Pai lhe deu no dia da ressurreição e da glória, o dia que o Senhor fez (Sl 118,24).
Ela concebe que nesta visão haverá aquela saciedade esperada pelo profeta, ao dizer: Serei saciado quando aparecer a tua glória (Sl 17,15).
Vês quanto licor emanou daquela pequena uva, quanto fogo nasceu duma centelha, quanto se alargou na bigorna da meditação, este pequeno pedaço de metal: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus!
Mas, quanto mais poderia alargar-se, se alguém experiente viesse ajudar!
Sinto como "é fundo o poço", mas não passo ainda de um noviço rude, que mal cheguei a tirar poucas gotas.
Inflamada por esses fachos, incitada por tais desejos, a alma começa a pressentir, quebrado o alabastro, a suavidade do ungüento. Não é ainda o gosto, mas é já o cheiro.
Por esse, a alma compreende quão suave seria experimentar essa pureza, cuja meditação a faz saber quanta alegria ela dá. Mas que fará ela?
Ardendo ao desejo de possuí-Ia, não encontra em si como a pode ter.
E quanto mais a procura, mais tem sede.
Enquanto se dá à meditação, sua dor aumenta, porque ainda não sente a doçura que a meditação mostra existir na pureza de coração, mas sem a dar.
Porque não cabe a quem lê nem a quem medita sentir tal doçura, se não recebe do alto (10 19,11) esse dom. Ler e meditar é comum tanto aos bons quanto aos maus, e os próprios filósofos pagãos encontraram, pelo exercício da razão, em que consiste, em suma, o verdadeiro bem.
Mas, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus (Rm 1,21) e, presumindo de suas forças, diziam: Venceremos graças à nossa língua, nossos lábios são nossos (Sl 12,5). Assim, não mereceram receber o que tinham podido ver. Perderam-se em seus pensamentos (Rm 1,21), e a sua sabedoria foi devorada (Sl 107,27)
A sabedoria deles tinha as suas fontes no estudo das ciências humanas, e não no Espírito de sabedoria que é o único a dar a verdadeira sabedoria, isto é, a ciência saborosa que alegra e nutre, com inestimável sabor, a alma que a possui. É dela que foi escrito: A sabedoria não entrará na alma perversa (Sb 1,4).
Esta procede só de Deus. E como o Senhor deu a muitos a missão de batizar, mas guardou só para si o poder e a autoridade de perdoar os pecados pelo batismo, o que levou João a dizer, por antonomásia e de modo preciso: É ele que batiza, assim também podemos dizer: É ele que dá sabor à sabedoria, e faz saborosa a ciência da alma.
A palavra é dada a todos; a sabedoria do espírito, que o Senhor distribui a quem quer e quando quer (cf. 1 Cor 12,11), a poucos é dada.

VI
A função da oração

Vendo, pois, a alma que não pode por si mesma atingir a desejada doçura de conhecimento e da experiência, e que quanto mais se aproxima do fundo do coração (Sl 64,7), tanto mais distante é Deus (cf. Sl 64,8), ela se humilha e se refugia na oração. E diz: Senhor, que não és contemplado senão pelos corações puros, eu procuro, pela leitura e pela meditação, qual é, e como pode ser adquirida a verdadeira doçura do coração, a fim de por ela conhecer-te, ao menos um pouco.
Eu buscava, Senhor, a tua face, a tua face Senhor, eu buscava (cf. Sl 27,8); meditei muito tempo em meu coração, e na minha meditação cresceu um fogo (cf. Sl 39,4) e o desejo de te conhecer ainda mais.
Quando me repartes o pão da Sagrada Escritura, na fração do pão te tomas. conhecido por mim (cf. Lc 24,35). E quanto mais te conheço, tanto mais desejo conhecer-te, não já na casca da leitura, mas no sabor da experiência.
Isto não peço, Senhor, por meus méritos, mas pela tua misericórdia.
Confesso-me indigna pecadora, mas até os cãezinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos (Mt 15,27).
Dá-me, pois, Senhor, o penhor da herança futura, uma gota ao menos da chuva celeste, para arrefecer a minha sede, pois ardo de amor (cf. Ct 2,5).

VII
Efeitos da contemplação

Com essas e outras palavras, a alma inflama o seu desejo, mostra assim o que nela se fez, por encantações invoca o seu Esposo.
E o Senhor, cujos olhos são fixos nos justos e cujos ouvidos estão não só atentos às suas preces (cf. Sl 34, 16), mas presentes nelas, não espera a prece acabar. Pois, interrompendo o curso da oração, apressa-se a vir à alma que o deseja, banhado de orvalho da doçura celeste, ungido dos perfumes melhores.
Ele recria a alma fatigada, nutre a que tem fome, sacia a sua aridez, lhe faz esquecer tudo o que é terrestre, vivifica-a, mortificando-a por um admirável esquecimento de si mesma, e embriagando-a, sóbria a torna.
Como em certas funções carnais a alma se deixa a tal ponto vencer pela concupiscência, que perde o próprio uso da razão e o homem se toma todo carnal, assim, ao contrário, nessa contemplação superior, os movimentos carnais são de tal modo vencidos e absorvidos pela alma, que a carne não contradiz em nada ao espírito, e o homem se torna quase todo espiritual.

VIII
Sinais da vinda da graça

Mas, Senhor, como descobrir quando realizas tudo isso, e qual é o sinal da tua vinda?
São, por acaso, os suspiros e as lágrimas os mensageiros e testemunhas da consolação e da alegria? Se assim é, estamos em presença duma nova antinomia e de uma significação inusitada.
Qual é, com efeito, a relação entre consolação e suspiros, alegria e lágrimas? Se é que se podem chamar lágrimas estas lágrimas, e não antes, abundância transbordante do orvalho interior derramado do céu, indício da purificação interior, limpeza do homem exterior.
No batismo de crianças, a purificação do homem interior é figurada e significada pela ablução exterior. Aqui, ao contrário, a purificação exterior procede da ablução interior.
Ó felizes lágrimas, pelas quais são lavadas as manchas interiores, e as labaredas do pecado se apagam! Bem-aventurados os que assim chorais, porque rireis (cf. Mt 5,5).
Nessas lágrimas reconhece, ó alma, o teu Esposo, abraça o Desejado, embriaga-te em torrente de delícias, suga do seio da consolação o leite e o mel. Estes são os maravilhosos presentinhos e consolos que teu Esposo te distribui e concede, isto é, tuas lágrimas e suspiros.
Ele te trouxe nessas lágrimas a poção sob medida, o pão de dia e de noite, aquele pão que confirma o coração do homem e é mais doce do que o favo de mel.
Ó Senhor Jesus, se são tão doces essas lágrimas que brotam da tua lembrança e do teu desejo, quão doce haverá de ser o gozo experimentado em tua visão manifesta!
Se é tão doce chorar por ti, quanto mais doce será gozar de ti?
Mas, por que exprimimos de público tais secretos colóquios? Por que me esforço por revelar em termos comuns essas inefáveis ternuras? Os que não as experimentaram, não as compreenderão. Eles as leriam mais claramente no livro da experiência, onde a unção divina ensina por si mesma (cf. l Jo 2,27).
De qualquer modo, porém, a letra exterior não aproveita ao leitor, pois a leitura da letra exterior é de pouco sabor, a não ser que uma explicação tire do coração o sentido interior.

IX
A graça se esconde

Ó minha alma, prolonguei por muito tempo este discurso. Pois era bom para nós estar ali, e contemplar com Pedro e João a glória do Esposo, e ficar largo tempo com ele, se ele quisesse fazer ali não duas, nem três tendas (cf. Mt 17,4), mas uma só em que estaríamos juntos, e juntos nos deleitássemos.
Mas eis que já diz o Esposo, Deixa-me partir, pois já sobe a aurora (Gn 32,26), já recebeste a luz da graça e a visita que desejavas.
Dada, pois, a bênção e mortificado o nervo da coxa, e mudado o nome de Jacó para Israel (cf. Gn 32,25-32), o Esposo longamente desejado se retira por um pouco de tempo, depressa escapa.
Ele se arreda, tanto em relação à visita de que falei, quanto à doçura da contemplação. Mas permanece sempre presente, quanto à direção, à graça, à união.

X
Como a ocultação da graça coopera para o nosso bem

Mas não temas, esposa, não desespere, não penses que és desprezada, se o Esposo te oculta por algum tempo a sua face. Tudo isso concorre ao teu bem (cf. Rm 8,28), e ganhas com a partida e com a vinda.
Ele veio para ti, e é também para ti que ele se afasta. Vem para a consolação, afasta-se por cautela, a fim de que a grandeza da consolação não te ensoberbeça, evitando que a presença contínua do Esposo, te leve a desprezar as companheiras e atribuas a consolação não à graça, mas à natureza.
Esta graça, o Esposo a concede quando quer e a quem ele quer, e não se possui como direito hereditário. É conhecido o provérbio que diz que a familiaridade excessiva gera o desprezo. Ele se afasta, pois, para não ser desprezado, se é demais assíduo, e para que, ausente, seja mais desejado, e desejado seja procurado com maior ardor, e longamente querido, seja, enfim, achado com maior alegria.
Além disso, se nunca faltasse essa consolação, que em relação à futura glória a revelar-se em nós (cf. Rm 8,18), é enigmática e parcial, talvez julgássemos que temos aqui cidadania permanente e procuraríamos menos a futura.
Assim, para não tomarmos o exílio por pátria, o penhor pelo pleno valor, é que o Esposo vem de tempo em tempo, ora trazendo consolação, ora a substituindo pelo leito de doente (cf. 8141,4).
Ele permite que saboreemos por um pouco de tempo a sua doçura, mas antes que ela seja plenamente sentida, ele se esvai. Assim, voejando sobre nós de asas abertas, ele nos provoca a voar (cf. Dt 32,11), como se dissesse: Experimentastes um pouco da minha suavidade e doçura, mas, se quereis saciar-vos plenamente, correi atrás de mim ao odor dos meus perfumes (cf. Ct 1,3), levantai os corações para o alto onde estou à direita do Pai. Aí me vereis, não mais em figura e em enigma, mas face a face, e então, o vosso coração gozará plenamente, e o vosso gozo ninguém vos tirará (Jo 16,22).

XI
Com que cuidado a alma se deve comportar depois da visita da graça

Mas, acautela-te, ó esposa. Quando o Esposo se ausenta, não vai para longe. Se não o vês, ele sempre te vê. Ele é cheio de olhos à frente e atrás (cf. Ez 1,18). Jamais podes fugir da sua vista. Tem junto de ti seus enviados, espíritos que são como que mensageiros muito sagazes, que vejam como te conduzes na ausência do Esposo, e te acusem diante dele se descobrirem em ti algum sinal de impureza e de leviandade.
Este Esposo é cheio de zelo. Se, acaso, acolheres um outro amante, ou te empenhas em agradar mais a um outro, ele logo se afasta de ti e se une a outras virgens fiéis.
É delicado esse Esposo, é nobre, é o mais belo dos filhos dos homens (Sl 45,3), e assim, não quer ter uma esposa senão perfeitamente bela. Se ele vir em ti uma mancha, ou uma ruga, logo desvia o seu olhar.
Ele não suporta nenhuma impureza. Sê, pois, casta, sê reservada e humilde, para merecer a visita freqüente do teu Esposo.
Temo que este discurso se tenha prolongado demais, mas a matéria abundante me obrigou a isto, assim como a sua doçura. Não prolonguei por minha espontânea vontade, foi o seu encanto que me arrastou sem sentir.

XII
Recapitulação do que foi dito

Para que se possa ver melhor em conjunto o que foi dito em forma mais desenvolvida, vamos recapitulá-lo em resumo.
Assim como foi notado nos exemplos propostos, podes ver como os ditos degraus se ligam uns aos outros entre si. E como um precede a outro, tanto no tempo, como na casualidade.
Qual primeiro fundamento, vem a leitura. Ela fornece a matéria e nos leva à meditação.
A meditação, por sua vez, perscruta com maior diligência o que se deve desejar, e como que cavando, acha e mostra o tesouro. Mas, como não pode por si mesma obtê-lo, leva-nos à oração.
A oração, elevando-se a Deus com todas as suas forças, obtém o tesouro desejável, a suavidade da contemplação.
Sobrevindo a contemplação, ela recompensa o trabalho dos três degraus referidos, embriagando. a alma sedenta com o orvalho da doçura celeste.
A leitura é feita segundo um exercício mais exterior; a meditação, segundo uma inteligência mais interior; a oração, segundo o desejo; a contemplação passa acima de todo sentido.
O primeiro degrau é dos principiantes; o segundo, dos que progridem; o terceiro, dos fervorosos; o quarto, dos bem-aventurados.

XIII
Como os mesmos degraus são ligados uns aos outros

Estes degraus são de tal modo ligados, e de tal forma servem uns aos outros, que os precedentes pouco ou nada aproveitam sem os seguintes, e os seguintes, por sua vez, nunca ou só raramente, podem ser adquiridos sem os precedentes.
Que adianta, com efeito, ocupar o tempo em contínua leitura, percorrer os feitos e os escritos dos santos, se não exprememos o seu suco, mastigando e ruminando, e não o passamos até ao mais íntimo do coração, engolindo, a fim de por eles considerarmos diligentemente o nosso estado, e cuidarmos de praticar as obras daqueles cujos feitos queremos ler freqüentemente?
Mas, como haveremos de cogitar estas coisas, ou como poderemos evitar que, meditando coisas erradas e vãs, se transgridam os limites constituídos pelos santos Pais, a não ser que sejamos antes instruídos a tal respeito pela leitura ou pelo ensino?
O ensino, de certo modo, se relaciona com a leitura, o que nos leva habitualmente a dizer que lemos para nós mesmos ou para os outros, mas também o que ouvimos dos mestres.
Igualmente, que vale ao homem ver pela meditação o que deve praticar, se não pode fazê-lo senão pelo auxilio da oração e pela graça de Deus? Porque todo dom excelente e todo dom perfeito vem de cima e desce do Pai das luzes (Tg 1,17).
Sem ele nada podemos, ao passo que ele faz em nós as obras, mas não sem nós. Pois somos cooperadores de Deus (1Cor 3,9), como diz o Apóstolo. Deus quer que lhe supliquemos, quer que abramos à graça que vem e bate à porta, o seio da nossa vontade, e lhe demos o nosso consentimento.
O Senhor exigia esse consentimento da Samaritana, quando dizia:
Chama o teu marido (Jo 4,16), como se dissesse: Quero te infundir a graça; aplica o teu livre arbítrio.
Dela exigia a oração: Se soubesses o dom de Deus, e quem é que te diz: Dá-me de beber, serias tu que lhe terias pedido a água viva (ib.1 O).
Inflamada, pois, pelo desejo, volta-se para a oração, dizendo:
Senhor, dá-me desta água, a fim de que eu não tenha mais sede. Assim, portanto, a palavra do Senhor que ouvira e depois meditara, a incitou à oração.
Como haveria de tomar-se solícita na súplica, se antes, a meditação não a tivesse feito arder? Ou de que lhe serviria a precedente meditação, se a oração seguinte não obtivesse o que aquela lhe mostrara?
Para que seja, pois, frutuosa a meditação, é preciso que se lhe siga o fervor da oração, da qual é como um efeito a doçura da contemplação.

XIV
Conseqüências do que foi dito

De tudo isso podemos concluir que a leitura sem a meditação é árida, a meditação sem a leitura é errônea, a oração sem meditação é morna, a meditação sem oração é infrutífera.
A oração com fervor obtém a contemplação, mas a aquisição da contemplação é rara ou miraculosa sem a oração.
Deus, com efeito, cujo poder não tem limites, e cuja misericórdia se estende a todas as suas obras, às vezes suscita das pedras filhos de Abraão (cf. Mt 3,9). É o que se dá quando força corações duros e rebeldes a querer. Ele é como o pródigo que, segundo se costuma dizer, "dá o boi com os chifres", quando vem sem ser chamado e se envolve sem ser procurado.
Embora tenha isso acontecido a alguns, como a Paulo e alguns outros, não devemos, no entanto, tentar a Deus presumindo tais dons, mas fazer o que nos compete, isto é, ler e meditar a lei de Deus, e rogar-lhe que ajude a nossa fraqueza, e veja a nossa imperfeição. Ele próprio nos ensina a fazer assim, quando diz: Pedi e recebereis, procurai e achareis, batei e abrir-se-vos-á (Mt 7,7). Pois agora o reino dos céus sofre violência, e são os violentos que dele se apoderam (Mt 11,12).
Eis, pois, que as distinções acima assinaladas permitem perceber as propriedades dos vários degraus, como se concatenam entre si, o que produz em nós cada um deles.
Feliz o homem que, tendo o espírito vazio de outros cuidados, deseja sempre passar e repassar por esses degraus. É aquele que, vendendo tudo que possui, compra o campo em que está escondido o tesouro desejável, que é recolher-se e ver como é suave o Senhor (cf. Sl 34,9).
Feliz, sim, aquele que, exercitado no primeiro degrau, bem atento no segundo, fervente no terceiro, alçado acima de si no quarto, se eleva cada vez mais forte, por essas subidas, até ver o Deus dos deuses em Sião (Sl 84,8).
Bem-aventurado é aquele, a quem é dado permanecer, ainda que por pouco tempo, nesse último degrau, e que pode dizer: Eis que sinto a graça de Deus, eis que contemplo com Pedro e João a sua glória no monte, eis que gozo com Jacó os abraços da bela Raquel.
Mas acautele-se ele depois de tal contemplação, para não cair nos abismos por uma queda desordenada, nem voltar, depois de tão grande visita, aos lascivos atos do mundo e às seduções da carne.
Como não pode a fraca ponta da mente humana sustentar mais longamente o esplendor da verdadeira luz, desça suavemente e com ordem algum dos três degraus pelos quais subira, e assim, alternadamente, ora em um ora em outro, demore segundo a moção do livre arbítrio e as circunstâncias de lugar e de tempo. A meu ver, ele estará tanto mais próximo de Deus, quanto mais longe do primeiro degrau. Como é, infelizmente, frágil e miserável a condição humana!
Vemos, pois, abertamente, com o auxílio da razão e os testemunhos das Escrituras, que a perfeição da vida bem-:-aventurada está contida nestes quatros degraus, e que o homem espiritual deve estar sempre a exercitar-se neles.
Mas, quem é que guarda esse modo de viver, quem é ele, e nós o louvaremos? (Eclo 31,9). Querer, muitos querem, mas fazer é de poucos.
Queira Deus que sejamos desses poucos.

XV
Quatro causas que nos retraem dos referidos degraus

São quatro as causas que, o mais das vezes, nos desviam desses degraus: uma necessidade inevitável, a utilidade duma boa ação, a fraqueza humana, a vaidade mundana.
A primeira é desculpável; a segunda é tolerável; a terceira é miserável; a quarta é culpável. E verdadeiramente culpável. A quem, por essa causa, é desviado do seu propósito, melhor seria não ter conhecido a graça de Deus, do que retroceder depois de conhecê-la. Que escusa terá do seu pecado?
Não lhe poderá, acaso, Deus dizer, com razão: Que mais te devia fazer e não fiz? (cf. Is 5,4). Não existias e te criei. Tornaste-te servo do diabo e do pecado, e te redimi. Corrias com os ímpios ao redor do mundo, e te escolhi. Dei-te graça perante meus olhos e queria fazer em ti a minha habitação, e em verdade me desprezaste. Não jogaste para trás somente as minhas palavras, mas a mim mesmo, e andaste em busca das tuas concupiscências.
Mas, ó Deus bom, suave e manso, doce amigo, conselheiro prudente, ajuda forte, como é desumano e temerário aquele que te rejeita, e repele do seu coração um hóspede tão humilde e clemente!
Ó infeliz e nociva troca, rejeitar o seu Criador e acolher pensamentos maus e prejudiciais, e entregar tão depressa a pensamentos impuros e ao espezinhar dos porcos até mesmo aquela câmara secreta do Espírito Santo, que é o fundo do coração, que pouco antes se dirigia às alegrias celestes!
Ainda estão quentes no coração os vestígios do Esposo, e já ali se intrometem desejos adulterinos.
É inconveniente e indecoroso para ouvidos que acabam de ouvir palavras que não é lícito ao homem falar (cf. 2Cor 12,4), entregar-se tão depressa a fábulas e a ouvir maledicências. E para olhos que acabam de ser batizados pelas lágrimas sagradas, de repente se voltar para ver vaidades. Para a língua que acaba de cantar um doce epitalâmio, e que tinha reconciliado o Esposo com a esposa por suas palavras inflamadas e persuasivas, e a introduzira no celeiro (cf. Ct 2,4), de novo se converter às conversas torpes, às leviandades, à urdi dura de dolos, à maledicência.
Não nos aconteça, Senhor, mas se acaso, por fraqueza humana, recairmos nisso, não desesperemos, mas de novo recorramos ao Médico clemente que levanta do pó o indigente e ergue o pobre do monturo (Sl 113,7). E ele, que não quer a morte do pecador, voltará a nos curar e salvar.
Já é tempo de pôr fim a esta carta. Oremos todos ao Senhor que no presente enfraqueça para nós os impedimentos que nos retraem da sua contemplação; no futuro, nos liberte inteiramente deles, levando-nos, mediante os referidos degraus, cada vez mais fortes, a vermos o Deus dos deuses em Sião (Sl 84,8). Ali, os eleitos não experimentarão mais gota a gota nem intermitentemente a doçura da contemplação. Pois terão, em incessante torrente de gozo, a alegria que ninguém tirará, e a paz imutável, a paz nele.
E tu, Gervásio, meu irmão, se do alto, te for dado um dia ascender ao cume desses degraus, lembra-te de mim e ora por mim, quando for bem para ti.
Assim, o véu puxe o véu (cf. Ex 26,33), e aquele que escuta, diga:
Vem! (Ap 22,17).
SCALA CLAUSTRALIUM, de Guigo II
Tradução de D. Timóteo A. Anastásio, O.S.B, antigo Abade do Mosteiro de São Bento. Bahia (BRASIL).

Notas:
  1. Guigo II (†1188) foi o nono sucessor de São Bruno como prior do deserto de Chartreuse, de 1174 até 1180. Faleceu em 1188.
  2. São João da Cruz, nos seus “Ditos de luz e de amor”, no nº 156, reproduz assim este texto de Guigo: “Procurai lendo e encontrareis meditando; chamai orando e abrir-vos-ão contemplando” (Ed.Vozes. Petrópolis,1996, p.108. Desse modo, o santo faz alusão breve aos passos da Lectio Divina monástica.
    Catecismo da Igreja Católica, no nº 2654, volta a acudir a este texto da Escada: “Os Padres espirituais, parafraseando Mt 7,7, resumem assim as disposições de um coração alimentado pela Palavra de Deus na oração: `Buscai lendo, e encontrareis meditando; chamai orando, e se os abrirá pela contemplação´.”

terça-feira, 7 de abril de 2020

Está consumado!



Quem lê o relato da criação não pode deixar de ouvir a sonora repetição, “e Deus viu que era bom”. A cada dia, uma nova sinfonia pode ser ouvida através de cada obra criada, com um desenvolvimento harmonioso que encanta todos os expectadores. Ao ser humano, o Criador diz: “cuidem”. E então ele descansa. Poderia Deus ter dito, “está consumado”. Mas não.
O som traz agora uma melodia dramática. Enganados pelo Diabo, simbolizado na cena pela serpente, nossos primeiros pais fizeram o que havia sido proibido. Descuidaram da ordem dada. Dor, medo, vergonha, humilhação...não é assim que ficamos quando caímos em si e percebemos o mal que fizemos a nós e aos outros? Dessa vez bem que o Diabo poderia ter dito, “está consumado”. Ora, Deus deveria ser justo e abandonar o ser humano a própria sorte, imaginou. Mas não. A justiça de Deus se dá através do cuidado da obra mais bela da criação, a quem ele mesmo quis coroar de “glória e beleza” (Cf. Sl 8).
No desfecho dramático da cena, vem um clarão de esperança, “porei hostilidade entre ti e a mulher, entre a tua linhagem a a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,15). Vemos aí que a hostilidade irá marcar nossa história, o inimigo não descansará até conseguir destruir toda a criação. Mas Deus também não. Enquanto o Diabo trabalha para destruir, Deus trabalha para salvar.
Para realizar seu projeto de salvação Deus foi se valendo de homens e mulheres que seguiram seus passos. Ele foi se dando a conhecer, revelando seu nome, dando sinais da sua presença. Exigiu do povo que se organizou em torno de sua lei, que o tivessem como único Deus. Escreveu isso com letras bem grande, gravou na pedra, pediu que eles a fixassem nos umbrais da casa, nas portas e até na própria roupa. Eles não deveriam esquecer que eram o seu povo. Mas eles esqueceram muitas vezes. E Deus? jamais esqueceu daqueles que ele mesmo escolheu.  
Em seus hinos de louvor os salmistas cantavam a “misericórdia de Deus” (Sl 136) e proclamavam os grandes feitos do Senhor. Eles se acostumaram a contar as suas histórias porque elas recordavam aquele que deu o pontapé inicial. Sim, foi Deus que quis começar essa história. La no começo com Abraão, “ilustre pai de uma multidão”, com Moisés que conversava com Deus “face a face”, passando por tantos outros pais, profetas, sacerdotes e sábios. Essas eram histórias marcadas por façanhas, heróis, lendas, sagas, leis, tragédias, vitórias, derrotas, canções. Eram histórias de amor.
Deus nunca abandonou o homem à própria sorte e, em sua infinita misericórdia, quis sempre salvá-lo. Em todo o fio que se desenrola pela Sagrada Escritura, vemos um Deus sempre ali, caminhando junto, apontando caminhos, perdoando. A aliança que Deus faz com o homem de Adão a Noé, de Abraão a Davi, de Amós a João Batista se realizou de modo definitivo no mistério pascal de Cristo Jesus, Nosso Senhor, que é o dom do Pai que, gratuitamente, oferta-se por nossa Salvação.
Não podemos esquecer que a nossa história é assinalada com uma mancha que chamamos de pecado. A convicção que temos é que somos pecadores, ofendemos a Deus, por isso, ficamos  “devendo”. Erros, faltas e falhas são cometidos diariamente. Não podemos dizer que “não temos pecados”, pois estaríamos mentindo (1Jo 1,8). Por isso, Jesus veio chamar os “pecadores” (Mt 9,13) e o eixo principal de toda a sua ação é o perdão dos pecados, a remissão das faltas.  É do alto da cruz que nosso sumo sacerdote brada: “Pai, está tudo consumado”. Aquilo que o homem não podia fazer por si mesmo, Deus o fez, o amor foi consumado, e o perdão nos foi dado. Somos amados por Deus e essa é a novidade que Nosso Senhor veio revelar. Recusamos, relutamos, abandonamos ou até negamos, mas é o amor que sempre vence. O Diabo tenta enganar os filhos e filhas de Deus, pondo nos seus ombros culpas, remorsos, condenações, fazendo-nos crer que o perdão de Deus tem limites. Se o homem se arrepende, Deus está pronto para perdoar. Não importa o que se fez, o arrependimento apaga tudo e garante acesso à festa dos redimidos.



segunda-feira, 6 de abril de 2020

Tenho sede!


E para que se cumprisse as Escrituras Jesus disse, “tenho sede” (Jo 19,28).

Mais uma vez, o Cristo pregado na cruz traz em seus lábios as palavras reconfortantes das Escrituras. Um salmo ressoa diante das poucas testemunhas que estão ali vendo essa cena tão trágica. Uma lamentação messiânica (Sl 69) de quem suporta insultos e humilhações (v. 8) por causa do seu zelo (v.10). O salmista diz que sua causa foi transformada em fábulas na boca dos que se embriagam (v.13), por isso ele dirige a Deus a sua prece e sabe que no tempo favorável ele irá responde-lo (v.14).
“Respondem-me, Iahweh, pois teu amor é bondade” (v. 17). Não seria essa súplica que o Senhor respondia quando gritou do alto da cruz “tenho sede?" Diante da dolorosa agonia, Jesus sente o mesmo que o salmista quando seus algozes querem matar sua sede com vinagre (v. 22). Mal sabiam eles, que aquele que sacia toda a sede de justiça estava ali diante deles olhando-os com terna compaixão.
Os mesmos olhos estiveram sobre o povo que caminhou pelo deserto (Cf. Ex 17). Eles tiveram sede e discutiram mais uma vez com Moisés. Sentiram falta do Egito, lugar da escravidão, e Deus ordena ao seu profeta que bata na rocha. Dali sai a água que sacia o povo. Muitos salmos cantaram essa prodigiosa ação de Deus que não abandonou seu povo a morte (Sl 78,15; 105,41; 114,8).
Outro salmista expressou um desejo que brota do fundo da alma, “minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo” (Sl 42,3). Como podemos saciar essa sede? através da oração. Invoca a Deus e ele vem com cântaros cheios de água para te saciar. Será que não é isso que o Filho de Deus encarnado quer nos dizer, que “tem sede” de nossas almas,  que quer que o invoquemos? Podemos viver sem Deus? O Salmista sabe que não, e é por isso mesmo que,  apesar de estar longe de sua terra, cultiva o pensamento de Deus através da oração (v.9).
No poço de Jacó, Jesus dialoga com a Samaritana. Ela foi ali apanhar água para saciar a sede da sua casa. Em um diálogo catequético, o Senhor faz essa mulher entrar na dinâmica do salmista até ela dizer, “dai-me de beber”.
Existia um distanciamento étnico-religioso entre Jesus e aquela mulher, que foi rompido através do diálogo. Debaixo do céu aberto, ao redor do poço a samaritana fez o seu encontro pessoal com Deus, esqueceu por um instante o que foi fazer ali e bebeu da fonte de água viva que sacia a sede de eternidade. Apesar da aparente resistência da mulher, Jesus foi calmante abrindo caminho, sem reprovações, para faze-la olhar para si mesma e ali encontrar a salvação. O abismo que a impedia foi vencido graças a iniciativa misericordiosa do Divino Amigo. Esse encontro provocou outros encontros. Ela sai dali e vai testemunhar junto aos seus o que viveu. Ela quer que os outros também bebam dessa água.
Santa Teresinha do Menino Jesus, fez uma experiência com o crucificado. Depois de participar da missa, contemplou o Senhor. Daí, ela mesma descreve o que vivenciou: “A vista daquele sangue precioso que rolava para o chão sem que ninguém procurasse recolhê-lo, partiu-se de dor meu coração, e tomei a resolução de permanecer continuamente em espírito ao pé da cruz, para receber o divino orvalho da salvação e derramá-lo depois sobre as almas. Daquele dia em diante o brado de Jesus moribundo: "Tenho sede!" ecoava incessantemente no meu coração, para nele despertar um ardor vivíssimo até então desconhecido. Queria dar de beber ao meu Amado Salvador; senti-me eu também devorada pela sede das almas, e a preço de qualquer sacrifício ambicionava livrar os pecadores das chamas eternas”.
Espírito Santo, fonte de água viva, faz criar em mim, sede pelas almas. Muitas morrem porque não sabem onde apanhar a água da vida que jorra pra eternidade. Que eu seja samaritano, para que outros venha a vós, que vivam, se alegrem, se renovem! Que a palavra do Senhor ecoe até sua volta gloriosa, “tenho sede”.