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domingo, 18 de agosto de 2024

O Espírito Santo nos leva ao deserto

 “Cheio do Espírito Santo, voltou Jesus do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto”

Muitas vezes ouvimos falar do deserto nas Escrituras, isso porque o lugar onde acontecem muitas das histórias narradas se dá em uma região desértica. A geografia acabou trazendo muitas lições para a teologia que passou a reconhecer o deserto como o lugar do encontro com Deus. A palavra hebraica midbar, traduzida como deserto, é na verdade "o lugar da palavra", onde Deus estabelece um diálogo constante. 

O povo hebreu precisou atravessar um deserto para chegar à terra prometida. Foi ali que eles descobriram o Deus que se deixou conhecer, rico em paciência,que foi se revelando a cada passo em meio às vicissitudes da própria caminhada. O grande “Eu sou” foi se transformando no “sou Eu” reconhecido como aquele “que tem nosso nome gravado na palma da mão” (Cf. Is), e que nos conhece “desde o ventre materno” (Cf. Jr). Esse percurso se transformou em uma imagem da travessia que todos nós temos que fazer para chegar ao céu. Durante essa travessia, iremos lidar com inúmeras situações que vão nos provar, exigir de nós força para vencer. 

Por que o Espírito Santo nos conduz ao deserto? para nos provar, isso mesmo, nos provar! Mas, porque o Espírito Santo quer nos provar? Temos que ser capazes de atravessar o deserto da vida que costuma ser muito exigente, e é sendo provado que vamos descobrindo nossa força. 

O nosso Divino Amigo, nos deixou essa lição. Jesus foi provado no deserto, Ele teve que passar por isso para nos ensinar a reconhecer a ação do mal e adquirir a força para vencer. Assim como Jesus, nós iremos bater de frente com o Tentador que vai fazer de tudo para nos derrotar, levando a morte espiritual. As situações que Jesus enfrenta, são as que nós enfrentamos no cotidiano. Por isso, para vencer, devemos fazer como ele fez. E como Jesus fez para vencer? “Permaneceu firme! Contemplando essa cena vemos que devemos “resistir ao Diabo” (Cf. Tg 4,7). Essa resistência vem da insistência de querer continuar, não desistir, de confiar naquele que nos ensina com palavras e obras.

O que o Espírito quer de nós quando nos leva ao deserto? nos ajudar a vencer as tentações. São inúmeras as tentações que sobrevêm no dia a dia. Poderíamos falar de muitas, mas queria apontar duas: o ter e o parecer. 

Podemos ao longo da vida querer ser reconhecidos pelo que temos e não pelo que somos. Daí nos esforçamos para ter cada vez mais, caímos na ilusão de que nosso valor vem do que possuímos. Dessa forma, nos tornamos egoístas e passamos a pensar só em si mesmo. Ter poder, fama e prazer passa a ser nossa busca contínua. Nos enganamos com muita facilidade nos deixando levar por essas tentações. Desta forma exploramos pessoas, coisificamos nossas relações, procuramos a satisfação através de prazeres efêmeros nos deixando levar por um espírito irascível.   

Trocamos o ser pelo ter, e com isso deixamos de ser mais humanos para ter mais “humanos” para idolatrar. Acabamos por deusificar a vida sem Deus, caindo no engano de depender mais de si mesmo e dos outros do que do próprio Deus. Dessa forma, viramos caricaturas, cópias que traduzem muito mal o que somos realmente. Na ânsia de querer ter passamos a parecer mais com animais do que com humanos a quem Deus fez “imagem e semelhança”. Passamos a ser animados por um espírito animalesco do que pelo Espírito divino e passamos a viver sem a água viva que sacia nossa sede durante a travessia do deserto da vida. 

Jesus, repleto do Espírito Santo, passa pelo deserto fazendo as trocas certas. O diabo lhe ofereceu todos os reinos do mundo se ele se ajoelhasse diante dele e o Messias escolheu adorar e servir a Deus. Não se dando por satisfeito, o tentador tenta o Senhor, e o Senhor responde a ele assim, “não tente o Senhor seu Deus”. Antes, o acusador quis dar pão ao Mestre, mas, a que preço? Não aceitando o preço cobrado por ele, nosso Salvador diz que “não só de pão vive o homem”. 

É  isso que o Espírito Santo quer de nós, que vivamos por Deus, para Deus e com Deus, deixando que Ele forme em nós o ser humano “perfeito” (Cl 1,28; 2 Tm 3,17; Fl 3,15-16; Tg 1,4). 


sexta-feira, 10 de maio de 2024

Simeão, homem cheio do Espírito Santo!

 “Ora, havia em Jerusalém um homem chamado Simeão. Esse homem, justo e piedoso, esperava a consolação de Israel, e o Espírito Santo estava nele".

Ao longo do Evangelho de Lucas ele menciona vários personagens que são cheios, plenos do Espírito Santo. E isso podia ser percebido através de suas virtudes. Por exemplo, Simeão é reconhecido como homem justo e piedoso. 

Justiça pode ser compreendida como uma devolução. Deus me dá gratuitamente, me enriquece com seus dons e eu devolvo a ele. Podemos fazer isso de diversas formas. Por exemplo, quando pomos em prática os preceitos estabelecidos, estamos no caminho do cumprimento dessa virtude. Participar da missa aos domingos é um preceito, desse modo, ir a missa é uma forma de exercitar a justiça. E quando decidimos cumprir o preceito, vemos o Espírito Santo agir para a salvação dos que creem. 

A justiça é também exercitada através da caridade que pratico. A caridade nesse sentido não é um ato de bondade, mas de justiça, porque dou do que já recebi de Deus. Ele com sua pobreza me enriquece (Cf. (2 Cor 8,9), e de mãos cheias, distribuo ao meu próximo, para tirá-lo da pobreza. Vejam o paradoxo da caridade: quem é rico fica pobre e quem é pobre fica rico! Quando divido um pedaço de pão para saciar a fome ou quando me aproximo, ouço e toco o meu próximo estou no caminho de Simeão, que é o da justiça através da caridade. Se tivéssemos a consciência da gratuidade de Deus, nos apressariamos para exercer a caridade em favor do próximo, seja de forma material ou espiritual. 

Já a piedade é a virtude que cria um ritmo divino ao que é humano, sagrado ao que é profano. É  o que faz do ser humano um orante. Quando se reconhece alguém como piedoso é porque sua vida tem sido transformada pela busca de Deus. E Ele quer nos encontrar para isso, transformar nossas vidas, tanto que nos atrai de várias formas. Quando falamos de piedade popular, por exemplo, recordamos um conjunto de práticas associadas a devoção como uma peregrinação, uma novena, uma ladainha, etc. que criam uma disposição interior que nos leva a Deus. Quantos Deus tem alcançado através da piedade popular? é incontável! 

Como virtude é um exercício, devemos praticar para alcançar esse bom hábito. E ao exercitar a justiça e piedade, as virtudes do grande Simeão, vou me enchendo do Espírito Santo que aperfeiçoa a cada dia.

"Impelido pelo Espírito Santo, foi ao templo. E tendo os pais apresentado o menino Jesus, para cumprirem a respeito dele os preceitos da Lei, tomou-o em seus braços e louvou a Deus nestes termos: “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz, segundo a vossa palavra, porque os meus olhos viram a vossa salvação que preparastes diante de todos os povos, como luz para iluminar as nações, e para a glória de vosso povo de Israel".

Qual o lugar daqueles que querem ser cheios do Espírito Santo? O templo! Muitos salmos falam da alegria de ir ao lugar sagrado: “que alegria quando me disseram, vamos à casa do Senhor” (Sl 121). Devemos ir ao templo material para nos transformarmos no templo espiritual. Dessa forma, vamos nos reconhecendo cada vez mais como lugar do Espírito Santo (Cf. 1 Cor 6,19). Isso exige uma saída de si mesmo para chegar a Deus, um percurso que vai do interior para o exterior. O templo tem uma arquitetura, salta aos nossos olhos, quando passamos por ele, não temos como deixar de ver, mas aquilo que o Espírito Santo quer realizar transcende o que os olhos são capazes de ver, pois desce ao lugar interior onde Deus se encontra à nossa espera. O Espírito Santo nos “empurra” ao templo, e isso é só o começo. Quando você entra no templo, se abre as portas do céu. Quando deixa o templo é o céu que faz de você um novo templo! 

São Paulo compreendia tão bem isso que escreve a uma de suas comunidades dizendo assim: “vós sois templo do Espírito Santo”. Somos casa, moradia de algo sagrado, divino. O que habita em nós trabalha para a nossa santificação mudando nosso interior para que resplandeça a glória de Deus através de nós! O espírito Santo edifica no ser humano, mesmo sabendo da finitude da nossa existência, da transitoriedade do ser, mesmo reconhecendo nossa instabilidade, inconstância e fragilidade. É assim que ele age, do interior para o exterior, para tornar nossa vida uma expressão do divino. O que cabe a nós é deixar o Espírito Santo fazer o seu trabalho, realizar sua ação transformadora. 

Ore neste momento, diga ao Espírito Santo: 

Vem, trabalha em mim, reconstrói a minha vida, faz de mim uma digna morada do Senhor. Edifica em meu interior, sustenta minha decisão de querer ser teu, todo teu, hóspede da alma!


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

O encontro dos amigos

 

Moisés recebe esse nome porque foi tirado das águas. Águas manchadas com as lágrimas de tantas mulheres que choraram a morte de seus filhos ou que amargavam a opressão que sofriam todos os dias.  Águas que tornavam a terra fértil, boa para o plantio, mas que não alimentavam a todos da mesma forma. Águas que recordavam ao povo hebreu, histórias de dilúvios que mesmo trazendo lembranças de destruição, carregavam também, sinais de esperança, porque alguns poucos sobreviveram, aqueles que entraram na Arca construída por Noé.  Muito tempo depois, outras águas banham o Filho de Deus, o novo Moisés, e agora passa a ser sinal de regeneração dos filhos de Deus (Cf. Rm 8, 15; Gal 4, 5-7; Tt 3,5). Das águas do Nilo vem a salvação do povo cativo no Egito, das águas do Jordão, que Cristo santificou, vem a salvação de todo o gênero humano!

Das águas vem aquele que vai guiar o povo por entre as águas em uma caminhada para a liberdade. Moisés cresceu e tomou partido pelo povo que ele não conhecia tão bem. Sabia que eles eram explorados, tomou partido e teve que partir porque já não era mais bem vindo. Foi a beira de um poço (Cf. Ex 2,15-16) que um novo momento de sua história se deu. Mais uma vez ele toma partido e dessa vez é bem-vindo na casa de Raguel, pai daquela que viria a se tornar sua esposa.

Aos poucos, aquela criança tirada das águas vai descobrindo sua vocação. No meio de uma teofania, Deus se revela a Moisés dizendo: "Eu vi, ouvi...desci para libertar o meu povo...". Esses verbos demonstram a ação de Deus que se preocupa com o destino do seu povo. A sua vocação está relacionada a missão a qual Deus o chama. E que missão! Ele reluta, sabe das enormes dificuldades que vai enfrentar. Acontece uma espécie de negociação e Deus vence. Moisés aceita a missão.

Não podemos deixar de dizer que todos temos um chamado, uma missão que cresce no chão da vida, lugar sagrado, que Deus rega através do Espírito Santo. Assim como Moisés, vamos descobrindo ao longo do tempo o que significa “vocação” e quanto mais amigos de Deus nos tornamos, percebemos a força irresistível do seu chamado. Não somos tirados das águas, mas sim, mergulhados pelo nosso Batismo que faz jorrar em nosso interior “rios de água viva” (Cf. Jo 7,37).

Vejam que essa última imagem nos lembra, algo abundante, “rios de água viva’, isso porque aquilo que Deus quer fazer é salvar o seu povo. De mim, de você, jorra uma água. Somos apenas um poço. Já bebemos da água de tantos que deram a vida por causa do Evangelho, Pedro e Paulo, Barnabé, Inácio, Agostinho, Antônio, Francisco, Teresa, Teresinha... deles ainda jorram água, porque suas vidas se transformaram em um exemplo. Com eles, a quem chamamos de santos, aprendemos a ir sempre ao encontro de poços que jorram água da vida, ou seja, a beber do testemunho deles que doaram suas vidas pelo Reino de Deus.

Deus precisa de mim e de você, Ele precisa de nós para que sua missão salvadora se realiza no aqui e agora da história. Não podemos nos tornar uma cisterna rachada (Cf. Jr 2,9-13) que não retêm água! Para que isso não aconteça devemos ser "amigos de Deus" como Moisés foi deixando que a água jorre abundantemente. Devemos reter essa água viva como um poço. O poço era um lugar de encontro porque ali se apanhava água. Jesus se encontrou com a Samaritana a beira de um poço (Cf. Jo 4) e esse diálogo revela a necessidade de “pedir a água da vida”. Hoje é você e Jesus. O poço é o seu coração. Ore, e deixe esse poço cheio de água. Depois vai ser você e o próximo, dois poços, uma só água. Bebam!  

 

 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Moisés, nascido das águas

 Naqueles dias, um homem da família de Levi tomou como esposa uma jovem da mesma tribo. A mulher concebeu e deu à luz um filho e, vendo como era belo, escondeu-o durante três meses. Como não podia mantê-lo oculto por mais tempo, arranjou uma cesta de papiro, calafetou-a com betume e pez, meteu nela o menino e colocou-a entre os juncos, à beira do Rio, enquanto a irmã dele se postava a certa distância, para ver o que iria acontecer-lhe. 

Ora a filha do faraó desceu ao Rio para se banhar, enquanto as suas damas de companhia passeavam ao longo da margem. Então ela avistou a cesta no meio dos juncos e mandou a uma serva que a fosse buscar. Abriu-a e viu a criança: era um menino a chorar. Teve pena dele e exclamou: «É um filho de hebreus». A irmã dele disse à filha do faraó: «Queres que eu vá procurar, entre as mulheres hebreias, uma ama para criar este menino?».«Vai.», respondeu-lhe a filha do faraó.

E a jovem foi chamar a mãe da criança. Disse-lhe a filha do faraó: «Leva este menino, a fim de o criares para mim, e eu própria te darei o teu salário». Então a mulher levou a criança e amamentou-a. Quando o menino cresceu, trouxe-o à filha do faraó, que o adoptou como filho e lhe deu o nome de Moisés, dizendo: «Salvei-o das águas». (Êxodo 2,1-6) 


Moisés nasce em uma realidade de sofrimento do seu povo. As crianças eram assassinadas, os mais jovens submetidos a trabalhos forçados e todos viam a liberdade com algo distante. Moisés nasce e é escondido, só que chegou a hora que não podendo mais esconde-lo, ele foi colocado dentro um cesto e posto nas margens do Rio Nilo (Cf. Ex 2,3). O curso providencial da mão de Deus fez com que as águas empurrassem o cesto até a filha do Faraó que imediatamente quis adotar essa criança hebreia. A irmã de Moisés acompanhava o cesto de longe, e quando viu o que aconteceu ofereceu seus serviços indo buscar uma mãe para amamentar aquele recém-nascido. O que é cômico no meio dessa enorme aflição é que, a mãe de Moisés tem novamente seu filho nos braços e ainda recebe um salário para fazer aquilo que outrora ela fazia sem nada em troca.  

  A história de Moisés, a criança “tirada das águas” é o começo do começo. Contemplamos com desgosto a opressão que abate o povo os transformando em “oprimidos”. Mas, ele sobrevive ao infortúnio da violência do Estado e vai ao longo do tempo compreendendo a escolha que Deus fez para libertar o seu povo da opressão. Ele foi chamado e diante dos enormes desafios, responde sim, e aquilo que era desgraça, da lugar a graça, a adversidade passa a ser oportunidade! 

Gostaria de brevemente fazer um elogio a mãe de Moisés. Ao ter essa criança, ela sabia que a alegria poderia se transformar em luto, mas mesmo assim, arriscou, porque “escolheu a vida e não a morte”. Diante da desumanidade que perseguia o seu povo, preferiu a humanidade. Ela cuida, protege e ama aquele menino sem saber o que o amanhã reserva. Ela é um sinal de esperança para muitos que se entregam ao desespero por causa da violência que espreita a porta de casa, ou que até mesmo, atinge, machucando quem passa a sofrer a dor, sem muitas vezes saber o que fez para merecer isso.

A violência é o rosto sombrio, perverso e indigesto da desumanidade. Existe esperança quando estamos diante da violência? sim, existe! A violência não tem a última palavra, e sim a paz que ecoa como um coral de vozes cujas palavras ressoam num som harmonioso. Ao longo da vida somos tentados a umedecer o canto da paz, dando voz a violência que grita querendo atenção. Fechemos os ouvidos a essa gritaria infernal e ouçamos o som da criação que sobe no palco do universo sendo ouvida em todos os cantos da casa comum. Aplaudamos cada criança que nasce pois ela esconde uma composição que o próprio Deus inscreveu em sua alma! Saudemos eufóricos a música de quem perdoou ou daqueles que passaram a se enxergar com compaixão. Toquemos o instrumento confeccionado pela madeira semelhante à da Cruz que em suas notas repetem a necessidade de amar com o mesmo amor com que Cristo nos amou.

  

sábado, 4 de novembro de 2023

Maria, favo de Sansão

 

No Ofício da Imaculada Conceição, Maria é associada ao favo de Sansão. Mas, quem foi Sansão? Quando lemos as Escrituras, vemos o relato da progressiva ocupação da terra que mana leite e mel, Canaã. A primeira forma de organização foi em tribos (o livro de Josué narra a entrada do povo em Canaã e a divisão da terra entre tribos). Cada tribo era autônoma e possuía um governo próprio. O que unia as tribos era a fé no mesmo Deus, único, que os tirou com mão forte e poderosa, da escravidão do Egito. Esse governo por vezes era exercido pelos juízes que procuravam pôr em prática um sistema igualitário, de acordo com as leis que Deus havia dado durante a caminhada pelo deserto (De acordo com Ex 20,1-21), ou que se levantavam para libertar o povo da opressão dos seus inimigos que ameaçavam as tribos. Sansão foi um desses juízes.

Sansão é filho de Manué, da tribo de Dã. Sua mãe era estéril e não tinha filhos, mas, o anjo a visitou anunciando que ela ficaria grávida e que desde o seio materno a criança seria consagrada a Deus. Sansão cresceu sendo reconhecida por sua força:

“Sansão desceu a Tamna. Chegando perto dos vinhedos de Tamna, viu um leãozinho que vinha rugindo ao seu encontro. O espírito de Javé desceu sobre Sansão, e ele, sem ter nada nas mãos, despedaçou o leãozinho, como se despedaça um cabrito. Sansão, porém, não contou nada a seus pais (Jz 14,5-6) Algum tempo depois, ele ia a casa da mulher com que ia se casar, mas antes se desvia do caminho “para ver o leão morto. Encontrou um enxame de abelhas com mel, na carcaça do leão. Recolheu o mel na mão e foi comendo pelo caminho. Quando alcançou seus pais, deu-lhes mel, e eles comeram (Cf. Jz 14,8-9). 

Quando chega à casa da mulher com quem ia se casar, ele oferece um banquete. Durante a festa ele propõe uma adivinhação: “do que come saiu comida, e do forte saiu doçura. No final, todos na festa descobrem que a resposta é uma pergunta: “O que é mais doce do que o mel, e o que é mais forte do que o leão?”. Não podemos dizer que essa pergunta encontra uma resposta em Jesus, o filho de Maria? Aquele que morreu e ressuscitou não é mais doce que o mel e mais forte que o Leão?

 Sansão é a imagem daquele que vem para nos libertar, Jesus, nosso Salvador, e Maria, a do favo de Sansão. Deus manifesta a força de um Leão quando envia seu Filho, nascido de uma mulher (Cf. Gl 4,4) para nos dar o perdão dos pecados. Ele nos prova como é doce ao paladar sua promessa e mais que o mel na boca, sua lei (Cf. Sl 119,103).

Maria é o favo de Sansão. Ela traz ao mundo de amargura, a doçura, de angustia, a paz. Contemplando a vida da Jovem de Nazaré, poderíamos facilmente dizer, “bem aventurados os que oferecem doçura porque esses tornarão o mundo mais humano”. O filósofo André Comte-Sponville diz que a “doçura é uma coragem sem violência, uma força sem dureza, um amor sem cólera”. Podemos dizer, que Maria é a expressão dessa concepção de doçura.  Com coragem, ele acompanha seu Filho até o Calvário. Diante da violência sofrida por  Ele, ela não amotina os seus a vingar-se, mas, recorda a todos a bem aventurança da paz que Jesus ensinou. Sua força vem do amor que o Cristo transforma em mandamento: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Nas poucas cenas guardadas pelos autores sagrados, não vemos a mãe de Deus andando com tristeza, desânimo ou inconstância, mas sim, com uma força profética que vem do seu “faça-se”.

Concluo essa breve reflexão com um aceno da liturgia que ressalta as virtudes de Maria: Vossos lábios são como um favo de mel que destila a suavidade; o leite e o mel estão sobre vossa língua, tanto vossas palavras são deliciosas”. Rezemos com confiança, invocando Maria como favo de Sansão.

 

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Flor do Carmelo

 "Elias subiu ao cimo do monte Carmelo, onde se encurvou por terra, pondo a cabeça entre os joelhos" (I Reis 18, 42).

Elias, o Tesbita, viveu no reino de Israel durante o século VIII a.C, durante o reinado de Acab. Ele é chamado por Deus como profeta, e interpreta que o seu povo está se afastando do verdadeiro Deus caindo no pecado da idolatria. Um dos episódios dramáticos da história do profeta acontece no monte Carmelo. Elias desafia os profetas de Baal. Consumido de zelo pela lei de Deus, invoca-o como testemunha diante do sacrifício: "Ouvi-me, Senhor, ouvi-me, para que este povo reconheça que vós, Senhor, sois Deus e que sois vós que converteis os seus corações! Então, subitamente, o fogo do Senhor baixou do céu e consumiu o holocausto, a lenha, as pedras, a poeira e até mesmo a água da valeta. Vendo isso, o povo prostrou-se com o rosto por terra e exclamou: O Senhor é Deus! O Senhor é Deus!” (1 Rs 18,37ss).

Elias quer salvaguardar a aliança e restabelecer a pureza da fé. Ele se lamenta dizendo: “Eu me consumo de ardente zelo por Iahweh dos exércitos, porque os filhos de Israel abandonaram tua aliança, derrubaram teus altares e mataram teus profetas”.

A aliança é um conceito básico que pode significar  pacto, acordo, contrato. Ao longo da história de Israel, Deus faz “acordos” com o seu povo. Temos o acordo com Noé onde se estabelece termos para a preservação da vida. Com Abraão, o acordo põe em marcha toda uma casa. A promessa da terra e da descendência faz com que a casa do nosso Pai da fé caminhe na direção do desconhecido. Esse acordo é renovado ao longo do caminho (Cf. Gn 15; 17,2; 18). No monte Sinai Deus estabelece um acordo chamando esse povo a ser “seu povo” pondo em prática o contrato estabelecido (os mandamentos - Cf. Ex 19).

Podemos dizer que Elias é o profeta do “primeiro mandamento”, já que seu profetismo recorda ao povo a condição fundamental que é amar a Deus e adorá-lo  e só a Ele prestar culto. É este mandamento que cria em nós a virtude da religião para nos voltarmos inteiramente a Deus. 

Podemos dizer que é essa virtude que nos faz “adoradores”. Adorar é parar diante de Deus, para começar um movimento interior. É calar a voz e deixar falar o que está dentro. É se voltar para o centro, deixando por um breve momento as periferias existenciais, para depois voltar, assinalado por quem me eleva ao se abaixar. E isso é surpreendente: adoro quem está perto e não longe, quem se aproxima ao invés de se afastar, porque graças ao amor exige apenas que eu fique por um momento ao seu lado.

Deus se revela ao profeta para comunicar novo ânimo, esperança, e colocá-lo  de volta no caminho que deveria seguir. Elias assume a fé no Deus de Israel e defende que seu povo preserve essa fé não se deixando levar pelos falsos ídolos.

Como profeta, Elias era homem de oração. Ele conhece a Deus na experiência da vida e mantém diálogo constante com ele. O profeta aprendeu a orar. E ora para ouvir Deus, para aprender  a caminhar com ele e ser no mundo palavra viva desse mesmo Deus que não se cansa de caminhar com seu povo. Apesar de sentir o peso do seu medo, das suas aflições e tormentos, renova sua força em Deus, é encorajado a continuar seu profetismo.  

Nesse mesmo monte, começa uma antiga experiência religiosa que se desenvolve em torno da “Virgem do Carmelo”. Alguns eremitas se refugiaram neste monte e ali começaram uma nova história sob o patrocínio da Virgem Maria, “O Carmo existe para Maria, e Maria é tudo para o Carmelo, na sua origem e na sua história, na sua vida de lutas e de triunfos, na sua vida interior e espiritual”.

A Virgem do Carmelo apareceu com sua luz resplandecente e traz um sinal aos carmelitas: o escapulário. Isso é como um “hábito”, uma veste de Maria. O escapulário nos coloca no caminho de Maria para aprendermos com suas virtudes. 

As virtudes de Maria são uma profecia para o mundo. A  humildade é uma das virtudes de Maria. Ela reconheceu o seu lugar no plano da salvação, escondeu-se no silêncio da casa de Nazaré, cumprindo com seu papel na obra da redenção. No casamento em Caná da Galiléia, fala com o seu Filho sobre a falta de vinho. Sabia que era a única coisa que devia fazer, por isso mesmo diz aos serventes: “façam tudo o que ele vos disser”. Maria não só faz a vontade de Deus, mas quer que todos a façam. Ela sabe que a alegria consiste em fazer a vontade de Deus. Ela foi a primeira adoradora. Por isso, convido você a rezar com Maria e cultivar a virtude da religião: 

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o verbo encarnado no teu seio.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o menino que crescia em sabedoria, estatura e graça.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o menino que se ocupava do sagrado.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o Filho que anunciava a chegada do Reino.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o Filho que curava.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele que libertou homens e mulheres da escravidão do pecado.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o Mestre que tantos ensinamentos transmitiu.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes aquele que nos chamou a ser bem aventurados.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o itinerante que não se cansava de amar, pois foi para isso que  veio.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes aquele que é a luz que veio iluminar o povo que jazia nas trevas.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes o Pastor que veio dá a vida pelas ovelhas.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele que sentava na mesa dos pecadores.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele que em sua pobreza veio nos enriquecer. 

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele que foi condenado injustamente. 

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes aquele que carregou sobre si nossas enfermidades.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o teu Filho crucificado.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o ressuscitado que venceu a morte.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele que enviou o Espírito Santo prometido.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele a quem devo adorar. 


Ouve, meu povo!

 Capítulo 15: Ouve, meu povo!

“Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Os mandamentos que hoje te dou serão gravados no teu coração” (Dt 6,4-6).

Na tradição de Israel o Shemá (ouve) é como uma profissão de fé rezado pelo povo em que se afirma a vocação de ser unicamente de Deus, no amor mútuo que cresce a cada ida e vinda que fazemos. Isso inclui obrigação de “andar em seus caminhos” (Dt 10,2) e servi-lo na medida do mesmo amor:

Esse verbo, na língua hebraica (Shemá), tem um sentido bem mais amplo. Significa também escutar, entender, prestar atenção, discernir e examinar. Por isso, para o autor sagrado, esse imperativo não diz respeito a um exercício de audição, mas um envolvimento com aquilo que se ouve. De outro modo, aquele que ouve a voz de Deus por meio da Palavra, assume as exigências da própria Palavra.

 No Novo Testamento a Palavra que se deve ouvir é o próprio Cristo: “Este é o meu Filho amado, ouvi-o” (Mc 9,7). É a sua voz que se ouve em toda Sagrada Escritura, porque no mistério de sua vida toda revelação chega à plenitude. No belo quadro da transfiguração a figura de Moisés e Elias nos dá a certeza de que em Cristo Jesus, a lei e os profetas chegam à perfeição “porque em dar-nos, como deu seu Filho, que é a sua palavra única (e outra não há), tudo que nos falou de uma vez nessa palavra, e nada mais tem a falar, (...) pois o que antes falava por parte aos profetas, agora nos revelou inteiramente, dando-nos o tudo que é seu filho.” (CIC 65). É a voz de Cristo que ecoa por toda a Sagrada Escritura, com efeito, nos livros sagrados o Pai que está nos céus vem carinhosamente ao encontro de seus filhos e com  eles fala” (CIC 104). 

A essa voz se deve uma obediência de fé, que quer dizer, submeter-se livremente à palavra ouvida. Todas as Escrituras apontam para Cristo. Ele é o Filho muito amado do Pai, a quem devemos escutar e seguir como discípulos. A Palavra é uma declaração de amor de Deus por nós. Ele fala conosco como um amigo. São Bernardo afirma que, no plano da Encarnação do verbo, Cristo é o centro de todas as Escrituras.

“Que a Palavra habite em vós” (Cl 3,16), diz São Paulo. De que forma isso acontece? Por meio da leitura orante das Escrituras, onde através da ação do Espírito Santo, Cristo se forma em nós. Essa experiência cria uma relação de amizade e, por meio desse encontro “entre amigos”, cultiva-se um “coração bíblico”, com uma disposição interior para ser “praticante da Palavra e não simples ouvintes” (Cf. Tg. 1,22a).

A leitura orante das Escrituras nos leva a visitar o jardim do Éden, acender uma fogueira com os patriarcas, enquanto se descansa da caminhada, deixar sua casa e ir ao encontro da terra da promessa, com a mesma fé de Abraão,  marchar com Moisés pelo deserto e renovar junto com os profetas a esperança depois de um doloroso tempo no exílio. Sentar à mesa com Marta e Maria. Está ao lado da Mãe de Jesus e João, o discípulo amado, na cruz do calvário e alegrar-se com o ressuscitado na manhã sem ocaso.

Devemos ter familiaridade com a Sagrada Escritura, fazer dela o nosso alimento. Aproximar-se da mesa onde se serve a própria Palavra viva. Como já dizia São Jerônimo: “A carne do Senhor é verdadeira comida e o seu sangue verdadeira bebida; é esse o verdadeiro bem que nos é reservado na vida presente: alimentar-nos da sua carne e beber o seu sangue, não só na Eucaristia, mas também na leitura da Sagrada Escritura. É, de fato, verdadeira comida e verdadeira bebida a Palavra de Deus que se obtém do conhecimento das Escrituras”.

A leitura orante das Escrituras quer ser um caminho para o conhecimento de Deus e de seu plano de salvação em Jesus Cristo onde todos podem encontrar nesta forma de leitura um meio simples e prático para aceder pessoal ou comunitariamente a Deus.

Nesse contexto, é preciso em primeiro lugar se alimentar do pão da Palavra, se aproximar da mesa da refeição, onde faz eco o velho ditado, “saco vazio não se põe em pé!”. Por isso devemos levar sempre uma reserva desse mesmo pão, para alimentar os que têm fome e sede de Deus. Precisamos repetir ao povo o texto da Escritura que diz: “Quem vem a mim (diz o Senhor), nunca mais terá fome....” (Cf. Jo 6,35b). Em nossa caminhada não vai ser difícil encontrar quem precise ser alimentado do pão vivo que é o próprio Senhor ressuscitado. Ao parafrasear o que diz João sobre o Pão da vida (Jo 6), podemos afirmar que quem não comer da carne transformada em Palavra não tem a vida em si mesmo, se torna “saco vazio”, que logo cairá sem forças.

A leitura orante das Escrituras é uma experiência de intimidade. O que se espera através dessa leitura, é que se crie uma relação de familiaridade, onde Deus se torna o “nosso grande amigo”. A cada dia, você tem a oportunidade de receber em sua vida o “Emanuel”, Deus conosco e é isso que dá sentido à nossa vida.