Páginahttps://www.vaticannews.va/pt.htmls

sábado, 4 de novembro de 2023

Maria, favo de Sansão

 

No Ofício da Imaculada Conceição, Maria é associada ao favo de Sansão. Mas, quem foi Sansão? Quando lemos as Escrituras, vemos o relato da progressiva ocupação da terra que mana leite e mel, Canaã. A primeira forma de organização foi em tribos (o livro de Josué narra a entrada do povo em Canaã e a divisão da terra entre tribos). Cada tribo era autônoma e possuía um governo próprio. O que unia as tribos era a fé no mesmo Deus, único, que os tirou com mão forte e poderosa, da escravidão do Egito. Esse governo por vezes era exercido pelos juízes que procuravam pôr em prática um sistema igualitário, de acordo com as leis que Deus havia dado durante a caminhada pelo deserto (De acordo com Ex 20,1-21), ou que se levantavam para libertar o povo da opressão dos seus inimigos que ameaçavam as tribos. Sansão foi um desses juízes.

Sansão é filho de Manué, da tribo de Dã. Sua mãe era estéril e não tinha filhos, mas, o anjo a visitou anunciando que ela ficaria grávida e que desde o seio materno a criança seria consagrada a Deus. Sansão cresceu sendo reconhecida por sua força:

“Sansão desceu a Tamna. Chegando perto dos vinhedos de Tamna, viu um leãozinho que vinha rugindo ao seu encontro. O espírito de Javé desceu sobre Sansão, e ele, sem ter nada nas mãos, despedaçou o leãozinho, como se despedaça um cabrito. Sansão, porém, não contou nada a seus pais (Jz 14,5-6) Algum tempo depois, ele ia a casa da mulher com que ia se casar, mas antes se desvia do caminho “para ver o leão morto. Encontrou um enxame de abelhas com mel, na carcaça do leão. Recolheu o mel na mão e foi comendo pelo caminho. Quando alcançou seus pais, deu-lhes mel, e eles comeram (Cf. Jz 14,8-9). 

Quando chega à casa da mulher com quem ia se casar, ele oferece um banquete. Durante a festa ele propõe uma adivinhação: “do que come saiu comida, e do forte saiu doçura. No final, todos na festa descobrem que a resposta é uma pergunta: “O que é mais doce do que o mel, e o que é mais forte do que o leão?”. Não podemos dizer que essa pergunta encontra uma resposta em Jesus, o filho de Maria? Aquele que morreu e ressuscitou não é mais doce que o mel e mais forte que o Leão?

 Sansão é a imagem daquele que vem para nos libertar, Jesus, nosso Salvador, e Maria, a do favo de Sansão. Deus manifesta a força de um Leão quando envia seu Filho, nascido de uma mulher (Cf. Gl 4,4) para nos dar o perdão dos pecados. Ele nos prova como é doce ao paladar sua promessa e mais que o mel na boca, sua lei (Cf. Sl 119,103).

Maria é o favo de Sansão. Ela traz ao mundo de amargura, a doçura, de angustia, a paz. Contemplando a vida da Jovem de Nazaré, poderíamos facilmente dizer, “bem aventurados os que oferecem doçura porque esses tornarão o mundo mais humano”. O filósofo André Comte-Sponville diz que a “doçura é uma coragem sem violência, uma força sem dureza, um amor sem cólera”. Podemos dizer, que Maria é a expressão dessa concepção de doçura.  Com coragem, ele acompanha seu Filho até o Calvário. Diante da violência sofrida por  Ele, ela não amotina os seus a vingar-se, mas, recorda a todos a bem aventurança da paz que Jesus ensinou. Sua força vem do amor que o Cristo transforma em mandamento: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Nas poucas cenas guardadas pelos autores sagrados, não vemos a mãe de Deus andando com tristeza, desânimo ou inconstância, mas sim, com uma força profética que vem do seu “faça-se”.

Concluo essa breve reflexão com um aceno da liturgia que ressalta as virtudes de Maria: Vossos lábios são como um favo de mel que destila a suavidade; o leite e o mel estão sobre vossa língua, tanto vossas palavras são deliciosas”. Rezemos com confiança, invocando Maria como favo de Sansão.

 

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Flor do Carmelo

 "Elias subiu ao cimo do monte Carmelo, onde se encurvou por terra, pondo a cabeça entre os joelhos" (I Reis 18, 42).

Elias, o Tesbita, viveu no reino de Israel durante o século VIII a.C, durante o reinado de Acab. Ele é chamado por Deus como profeta, e interpreta que o seu povo está se afastando do verdadeiro Deus caindo no pecado da idolatria. Um dos episódios dramáticos da história do profeta acontece no monte Carmelo. Elias desafia os profetas de Baal. Consumido de zelo pela lei de Deus, invoca-o como testemunha diante do sacrifício: "Ouvi-me, Senhor, ouvi-me, para que este povo reconheça que vós, Senhor, sois Deus e que sois vós que converteis os seus corações! Então, subitamente, o fogo do Senhor baixou do céu e consumiu o holocausto, a lenha, as pedras, a poeira e até mesmo a água da valeta. Vendo isso, o povo prostrou-se com o rosto por terra e exclamou: O Senhor é Deus! O Senhor é Deus!” (1 Rs 18,37ss).

Elias quer salvaguardar a aliança e restabelecer a pureza da fé. Ele se lamenta dizendo: “Eu me consumo de ardente zelo por Iahweh dos exércitos, porque os filhos de Israel abandonaram tua aliança, derrubaram teus altares e mataram teus profetas”.

A aliança é um conceito básico que pode significar  pacto, acordo, contrato. Ao longo da história de Israel, Deus faz “acordos” com o seu povo. Temos o acordo com Noé onde se estabelece termos para a preservação da vida. Com Abraão, o acordo põe em marcha toda uma casa. A promessa da terra e da descendência faz com que a casa do nosso Pai da fé caminhe na direção do desconhecido. Esse acordo é renovado ao longo do caminho (Cf. Gn 15; 17,2; 18). No monte Sinai Deus estabelece um acordo chamando esse povo a ser “seu povo” pondo em prática o contrato estabelecido (os mandamentos - Cf. Ex 19).

Podemos dizer que Elias é o profeta do “primeiro mandamento”, já que seu profetismo recorda ao povo a condição fundamental que é amar a Deus e adorá-lo  e só a Ele prestar culto. É este mandamento que cria em nós a virtude da religião para nos voltarmos inteiramente a Deus. 

Podemos dizer que é essa virtude que nos faz “adoradores”. Adorar é parar diante de Deus, para começar um movimento interior. É calar a voz e deixar falar o que está dentro. É se voltar para o centro, deixando por um breve momento as periferias existenciais, para depois voltar, assinalado por quem me eleva ao se abaixar. E isso é surpreendente: adoro quem está perto e não longe, quem se aproxima ao invés de se afastar, porque graças ao amor exige apenas que eu fique por um momento ao seu lado.

Deus se revela ao profeta para comunicar novo ânimo, esperança, e colocá-lo  de volta no caminho que deveria seguir. Elias assume a fé no Deus de Israel e defende que seu povo preserve essa fé não se deixando levar pelos falsos ídolos.

Como profeta, Elias era homem de oração. Ele conhece a Deus na experiência da vida e mantém diálogo constante com ele. O profeta aprendeu a orar. E ora para ouvir Deus, para aprender  a caminhar com ele e ser no mundo palavra viva desse mesmo Deus que não se cansa de caminhar com seu povo. Apesar de sentir o peso do seu medo, das suas aflições e tormentos, renova sua força em Deus, é encorajado a continuar seu profetismo.  

Nesse mesmo monte, começa uma antiga experiência religiosa que se desenvolve em torno da “Virgem do Carmelo”. Alguns eremitas se refugiaram neste monte e ali começaram uma nova história sob o patrocínio da Virgem Maria, “O Carmo existe para Maria, e Maria é tudo para o Carmelo, na sua origem e na sua história, na sua vida de lutas e de triunfos, na sua vida interior e espiritual”.

A Virgem do Carmelo apareceu com sua luz resplandecente e traz um sinal aos carmelitas: o escapulário. Isso é como um “hábito”, uma veste de Maria. O escapulário nos coloca no caminho de Maria para aprendermos com suas virtudes. 

As virtudes de Maria são uma profecia para o mundo. A  humildade é uma das virtudes de Maria. Ela reconheceu o seu lugar no plano da salvação, escondeu-se no silêncio da casa de Nazaré, cumprindo com seu papel na obra da redenção. No casamento em Caná da Galiléia, fala com o seu Filho sobre a falta de vinho. Sabia que era a única coisa que devia fazer, por isso mesmo diz aos serventes: “façam tudo o que ele vos disser”. Maria não só faz a vontade de Deus, mas quer que todos a façam. Ela sabe que a alegria consiste em fazer a vontade de Deus. Ela foi a primeira adoradora. Por isso, convido você a rezar com Maria e cultivar a virtude da religião: 

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o verbo encarnado no teu seio.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o menino que crescia em sabedoria, estatura e graça.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o menino que se ocupava do sagrado.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o Filho que anunciava a chegada do Reino.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o Filho que curava.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele que libertou homens e mulheres da escravidão do pecado.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o Mestre que tantos ensinamentos transmitiu.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes aquele que nos chamou a ser bem aventurados.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o itinerante que não se cansava de amar, pois foi para isso que  veio.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes aquele que é a luz que veio iluminar o povo que jazia nas trevas.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes o Pastor que veio dá a vida pelas ovelhas.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele que sentava na mesa dos pecadores.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele que em sua pobreza veio nos enriquecer. 

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele que foi condenado injustamente. 

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes aquele que carregou sobre si nossas enfermidades.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o teu Filho crucificado.

Deus vos salve Maria,

Tu que adorastes o ressuscitado que venceu a morte.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele que enviou o Espírito Santo prometido.

Deus vos salve Maria, 

Tu que adorastes aquele a quem devo adorar. 


Ouve, meu povo!

 Capítulo 15: Ouve, meu povo!

“Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Os mandamentos que hoje te dou serão gravados no teu coração” (Dt 6,4-6).

Na tradição de Israel o Shemá (ouve) é como uma profissão de fé rezado pelo povo em que se afirma a vocação de ser unicamente de Deus, no amor mútuo que cresce a cada ida e vinda que fazemos. Isso inclui obrigação de “andar em seus caminhos” (Dt 10,2) e servi-lo na medida do mesmo amor:

Esse verbo, na língua hebraica (Shemá), tem um sentido bem mais amplo. Significa também escutar, entender, prestar atenção, discernir e examinar. Por isso, para o autor sagrado, esse imperativo não diz respeito a um exercício de audição, mas um envolvimento com aquilo que se ouve. De outro modo, aquele que ouve a voz de Deus por meio da Palavra, assume as exigências da própria Palavra.

 No Novo Testamento a Palavra que se deve ouvir é o próprio Cristo: “Este é o meu Filho amado, ouvi-o” (Mc 9,7). É a sua voz que se ouve em toda Sagrada Escritura, porque no mistério de sua vida toda revelação chega à plenitude. No belo quadro da transfiguração a figura de Moisés e Elias nos dá a certeza de que em Cristo Jesus, a lei e os profetas chegam à perfeição “porque em dar-nos, como deu seu Filho, que é a sua palavra única (e outra não há), tudo que nos falou de uma vez nessa palavra, e nada mais tem a falar, (...) pois o que antes falava por parte aos profetas, agora nos revelou inteiramente, dando-nos o tudo que é seu filho.” (CIC 65). É a voz de Cristo que ecoa por toda a Sagrada Escritura, com efeito, nos livros sagrados o Pai que está nos céus vem carinhosamente ao encontro de seus filhos e com  eles fala” (CIC 104). 

A essa voz se deve uma obediência de fé, que quer dizer, submeter-se livremente à palavra ouvida. Todas as Escrituras apontam para Cristo. Ele é o Filho muito amado do Pai, a quem devemos escutar e seguir como discípulos. A Palavra é uma declaração de amor de Deus por nós. Ele fala conosco como um amigo. São Bernardo afirma que, no plano da Encarnação do verbo, Cristo é o centro de todas as Escrituras.

“Que a Palavra habite em vós” (Cl 3,16), diz São Paulo. De que forma isso acontece? Por meio da leitura orante das Escrituras, onde através da ação do Espírito Santo, Cristo se forma em nós. Essa experiência cria uma relação de amizade e, por meio desse encontro “entre amigos”, cultiva-se um “coração bíblico”, com uma disposição interior para ser “praticante da Palavra e não simples ouvintes” (Cf. Tg. 1,22a).

A leitura orante das Escrituras nos leva a visitar o jardim do Éden, acender uma fogueira com os patriarcas, enquanto se descansa da caminhada, deixar sua casa e ir ao encontro da terra da promessa, com a mesma fé de Abraão,  marchar com Moisés pelo deserto e renovar junto com os profetas a esperança depois de um doloroso tempo no exílio. Sentar à mesa com Marta e Maria. Está ao lado da Mãe de Jesus e João, o discípulo amado, na cruz do calvário e alegrar-se com o ressuscitado na manhã sem ocaso.

Devemos ter familiaridade com a Sagrada Escritura, fazer dela o nosso alimento. Aproximar-se da mesa onde se serve a própria Palavra viva. Como já dizia São Jerônimo: “A carne do Senhor é verdadeira comida e o seu sangue verdadeira bebida; é esse o verdadeiro bem que nos é reservado na vida presente: alimentar-nos da sua carne e beber o seu sangue, não só na Eucaristia, mas também na leitura da Sagrada Escritura. É, de fato, verdadeira comida e verdadeira bebida a Palavra de Deus que se obtém do conhecimento das Escrituras”.

A leitura orante das Escrituras quer ser um caminho para o conhecimento de Deus e de seu plano de salvação em Jesus Cristo onde todos podem encontrar nesta forma de leitura um meio simples e prático para aceder pessoal ou comunitariamente a Deus.

Nesse contexto, é preciso em primeiro lugar se alimentar do pão da Palavra, se aproximar da mesa da refeição, onde faz eco o velho ditado, “saco vazio não se põe em pé!”. Por isso devemos levar sempre uma reserva desse mesmo pão, para alimentar os que têm fome e sede de Deus. Precisamos repetir ao povo o texto da Escritura que diz: “Quem vem a mim (diz o Senhor), nunca mais terá fome....” (Cf. Jo 6,35b). Em nossa caminhada não vai ser difícil encontrar quem precise ser alimentado do pão vivo que é o próprio Senhor ressuscitado. Ao parafrasear o que diz João sobre o Pão da vida (Jo 6), podemos afirmar que quem não comer da carne transformada em Palavra não tem a vida em si mesmo, se torna “saco vazio”, que logo cairá sem forças.

A leitura orante das Escrituras é uma experiência de intimidade. O que se espera através dessa leitura, é que se crie uma relação de familiaridade, onde Deus se torna o “nosso grande amigo”. A cada dia, você tem a oportunidade de receber em sua vida o “Emanuel”, Deus conosco e é isso que dá sentido à nossa vida.