A experiência pastoril faz
parte da cultura do povo hebreu. A história de Caim e Abel é um reflexo da luta
existente entre pastores e agricultores (Gn 4). Em outro episódio, as boas
relações de parentesco entre Abraão e Ló, seu sobrinho, são ameaçadas por constantes
brigas entre os seus pastores (Gn 13,7). Depois que Moisés fugiu do Egito ele
refugiou-se no país de Madiã e em certa ocasião sentado perto do poço ele
defendeu as filhas do sacerdote do lugar, Jetro, de alguns pastores que
tentavam expulsá-las. Elas queriam apenas apanhar água para o seu rebanho.
Moisés foi acolhido por Jetro que lhe deu uma de suas filhas como esposa e ele passou
a “pastorear o rebanho de seu sogro Jetro, sacerdote de Madiã” (cf. Ex 3,1).
Davi era pastor de um pequeno rebanho (Cf. 1 Sm 16,11) e foi ele ungido por
Samuel para ser rei de Israel. Amós foi chamado a ser profeta, ele que antes
tinha por ofício pastorear o rebanho “mas o Senhor me tirou de meu rebanho e me
mandou profetizar a seu povo, Israel” (Am 7,15). Os profetas constantemente
usam essa imagem para exortar os governantes, reis, sacerdotes ou até mesmo profetas
por não cuidarem do povo,
“Pois
assim diz o Senhor, Deus de Israel, aos pastores que pastoreavam meu povo: vós
dispersantes minhas ovelhas, expulsaste-as, não cuidastes delas; por isso eu
vos pedirei contas de vossas más ações – oráculo do Senhor” (Jr 23,2)
“-
Filho de Adão profetiza contra os pastores de Israel, profetiza dizendo-lhes:
Pastores, isto diz o Senhor: Ai dos pastores de Israel que apascentam a sim
mesmos! Não devem os pastores apascentar as ovelhas? (Ez 34,2)
“Ai
do pastor insensato que abandona o rebanho” (Zc 12,17a)
Nos livros do AT a imagem do
pastor refere-se em primeiro lugar a Deus. No Sl 23,1 o salmista chama a Iahweh
de “pastor” e afirma que sob os seus cuidados nada lhe “falta”, pois Ele
conhece o lugar onde as ovelhas podem descansar.
A figura do rei pastor é
antiga na literatura profética. Jeremias que proferiu seus oráculos na época da
monarquia chama a atenção dos reis e reprova o mau cumprimento de suas funções,
“os
pastores rebelaram-se contra mim, os profetas profetizaram por baal e, assim
correram atrás do que não vale nada”
(Jr 2, 8b)
“porque
os pastores foram estúpidos, não procuraram Iahweh. Por isso não tiveram
sucesso, e todo o rebanho foi disperso” (Jr 10,21)
No cap. 23 o mesmo profeta
começa o seu oráculo dizendo: “Ai dos
pastores que perdem e dispersam as ovelhas do meu rebanho” e continua no
mesmo tom a sua exortação. A diferença é que a partir do vs. 5 ele anuncia um
tempo novo onde Deus suscitará um rei, da casa de Davi, e esse “agirá com inteligência e exercerá na terra
o direito e a justiça”. Ele será enviado para tirar as ovelhas da situação
em que se encontram. A partir do exemplo de Davi se cria a figura ideal do
rei-pastor, e o salmista confirma essa predileção:
“Foi
Deus quem escolheu Davi, seu servo, tiro-o do aprisco das ovelhas; da companhia
das ovelhas fê-lo vir para apascentar a Jacó, seu povo, e Israel sua herança;
ele os apascentou com coração íntegro e conduziu-os com mão sábia” (cf. Sl 78,70-72)
O profeta Ezequiel continua
a exortação feita por Jeremias aos maus pastores e diz a eles que por causa dos
seus crimes Deus lhes tirará o rebanho que eles maltratam e ele próprio será o
pastor de seu rebanho:
“Com
efeito assim diz o Senhor Iahweh: certamente eu mesmo cuidarei do meu rebanho e
dele me ocuparei. Como o pastor cuida do seu rebanho, quando está no meio das
ovelhas dispersas, assim cuidarei das minhas ovelhas e as recolherei de todos
os lugares por onde se dispersaram em dia de nuvem e escuridão” (Ez 34,11-12).
Alguns textos do NT
encontram o seu esboço nesse contexto veterotestamentário como, por exemplo, a
parábola da ovelha perdida (Mt 18, 12-14; Lc 15,4-7) e sobretudo a parábola do
bom pastor (Jo 10, 11-18). A imagem do pastor inspirada nessa parábola
tornou-se um dos temas iconográficos mais antigos do Cristianismo. Em um dos
afrescos bem conhecido do povo, encontramos Jesus carregando a ovelha nos
ombros.
Na palestina antiga, o rebanho
de muitas famílias passava a noite em um curral comum. De manhã, cada pastor
chama o seu rebanho e leva-os a pastagem. Nesse ofício tão comum a cultura do
lugar o problema é com aquele que vem “pra roubar, matar e destruir”. Essa
tensão é apontada no começo da parábola (vr. 1-5): os que entram pela porta,
porque o porteiro os conhece e os que sobem por outra parte para roubar, entre
os que ouvem a voz do pastor e o seguem e os que fogem do estranho porque não o
conhecem. Mas fica evidente a relação de intimidade entre o pastor e a ovelha,
“ele chama as ovelhas pelo nome”, “as ovelhas seguem-no, pois conhecem a sua
voz”.
Depois da incompreensão dos
seus ouvintes Jesus afirma categoricamente “Eu sou a porta das ovelhas”. Ele
recorda que os que vieram antes dele eram ladrões e salteadores e que somente
por meio Dele, a ovelha encontra salvação, “se alguém entra por mim será
salvo”. Esse aspecto soteriologico se torna ainda mais evidente na continuação
da parábola quando toda a ação do pastor tem por objetivo reconduzir as ovelhas
ao aprisco, socorrer e proteger as ovelhas do lobo devorador.
A
experiência fundamental de toda a Sagrada Escritura é uma experiência de
salvação. O conceito da palavra “salvação” vem do grego sötëria de onde
a tradução nos remete a cura, remédio. No latim, salus tinha um
significado muito particular na época. Salus é uma palavra que literalmente
significa saúde. É o nome da deusa, filha de Esculápio, que possuía um templo
no monte Quirino. No tempo de Paulo, a soteria, do verbo sözö
[salvar do mal, conservar do mal, preservar, socorrer] é o substantivo que tem
como significado principal o de salvamento ou libertação de um perigo que ameaça
a vida. Nos evangelhos, a palavra soteria aparece
quatro vezes em Lucas e uma vez em João. Das quatro vezes que o termo aparece
em Lucas, três delas pertencem ao canto de Zacarias e a outra é a declaração
feita a Zaqueu de que a salvação entrou na sua casa (19,9). Em João, Jesus
declara que a salvação provém dos judeus e não dos samaritanos [a salvação era
Ele mesmo] (Jo 4, 22). Em todos os casos, soteria grego é traduzido por salus
latino. Soteria aparece em Paulo dezessete vezes, das quais cinco em
Romanos, e é sempre traduzido pelo salus latino. E na carta aos romanos,
sempre tem um significado de salvação, como uma liberação escatológica do mal
que é por assim dizer, a separação do amor de Deus. E quem opera essa salvação
do homem é Jesus, a quem o anjo em Belém chamou no dia de seu nascimento Soter,
que é Cristo Senhor.
A
nossa salvação
se dá na morte e ressurreição de
Cristo Jesus: “Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato
de Cristo ter morrido por nós quando ainda éramos pecadores. Quanto mais,
então, agora, justificados por seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Pois
quando éramos inimigos fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho,
muito mais agora, uma vez reconciliados, seremos salvos por sua vida” (Rm
5,8-10). É a partir desse mistério que se compreende toda a Sagrada Escritura,
pois é onde se revela a plenitude da revelação: “Então abriu-lhes a mente
para que entendessem as Escrituras” (Lc 24,45).
A aliança
que Deus faz com o homem de Adão a Noé, de Abraão a Davi, de Amós a João
Batista se realizou de modo definitivo no mistério pascal de Cristo Jesus,
Nosso Senhor, que é o dom do Pai que, gratuitamente, se oferta por nossa
Salvação. É este anúncio que Pedro faz no dia de Pentecostes a todos os
ouvintes que participavam da festa naquela ocasião: “A este Jesus (que foi
crucificado), Deus o ressuscitou, e disto nós somos testemunhas. Portanto,
exaltado pela direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e
o derramou, e é isto o que vedes e ouvis... Saiba, portanto, com certeza, toda
a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós
crucificastes” (At 2,32-33.36).
Um comentário:
Deus abençoe seu precioso pastoreio!
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