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domingo, 31 de maio de 2020

A casa de Pentecostes


“Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar.De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados.Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles.Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem” (At 2,1-4).

O Pentateuco nos indica um calendário com as mais importantes festas religiosas da tradição judaica. A Páscoa do Antigo Testamento, como primeira festa da primavera, inaugurava o ano litúrgico de Israel e estabelecia a grande “memória de Israel”, atualizando a experiência do Deus libertador, que constituía o eixo principal da fé. De acordo com Ex 23 o povo vinha em romaria para celebrar as três principais festas: Ázimos; Colheita, também chamada festa das Semanas e a festa das Tendas no outono.

            A festa de Pentecostes está relacionada à Páscoa. Seu nome tradicional é Festa das Semanas (Ex 34,22), mas também essa celebração era conhecida como a Festa das Colheitas (Ex 23,16) por causa de uma tradição agrícola que tem lugar no fim das sete semanas dos ázimos. Ocasionalmente é chamada também de festa das primícias (Nm 28,26). O judaísmo helenístico chamava esse dia de Cinquentésimo, de onde seu nome grego Pentecostes (Cf. Tb 2,1), de uso comum nas comunidades cristãs que adotaram a versão dos Setenta. A Festa de Pentecostes, como festa agrária é um momento festivo, pois o agricultor celebra o dom do Criador que generosamente fecunda o seu campo de modo que no centro da festa estava a oferta solene dos frutos da colheita no santuário em Jerusalém.

A legislação estabelecia que “a partir do dia seguinte ao sábado, desde o dia em que tiverdes trazido o feixe de apresentação, contareis sete semanas completas. Contareis cinqüenta dias até o dia seguinte ao sétimo sábado e oferecereis a Iahweh uma nova oblação” (Lv 23,15-16).

            Em certos ambientes judaicos, a festa transforma-se essencialmente em festa da aliança. No período logo após o exílio, a grande preocupação do povo era a afirmação da identidade judaica enquanto povo de Deus. Os sacerdotes ocupam um papel muito importante nesse período como guardiões do valioso patrimônio da fé do povo de Israel. Era um tempo de reforma, procurava-se redescobrir um novo sentido para a vida do povo que era profundamente marcado pelo culto. É feito uma releitura dos principais acontecimentos da história de Israel associando-os ao ritmo celebrativo. Por exemplo, no século II a. C o livro dos Jubileus surgido nesse período, em um grupo sacerdotal reformista próximo ao grupo dos Assideus e que exerceu forte influência sobre a comunidade de Qumrã, interpreta a festa das semanas como dia comemorativo da aliança de Deus com Israel. No mês período, o grupo político-religioso dos Saduceus, celebra a festa como comemoração da aliança no Sinai, a partir de uma leitura de Êxodo 19 que marca a chegada do povo no cume do monte no “terceiro mês”, período em que se comemorava a Festa das Semanas. Outro grupo, o dos fariseus, logo após a destruição do templo em 70 d.C, da um novo sentido a festa, agora como celebração do dom da lei.

            Sabemos que os Apóstolos estavam reunidos naquela casa para celebrar uma festa do calendário judaico. O clima não era dos melhores para celebrar, afinal, os rumores da morte de Jesus se espalharam por todos os lugares e o medo de morrer assolava esses homens. Porém, a data exigia que eles se reunissem. Estou convencido de que Maria, a mãe de Jesus, teve um papel importante nesse momento da crise dos apóstolos após o escândalo da cruz, encorajando, ajudando a reuni-los, animando-os para que não desanimassem. Maria desde a sua anunciação foi preparada para ser a mestra dos apóstolos no cenáculo.

            Muitas datas exigem que reunamos nossa família, por isso, devemos propor um novo olhar sobre o calendário. É ele que organiza o tempo, nos ajuda a planejar e é uma invenção de enorme importância para todos nós. Através do calendário organizamos nosso trabalho, férias, aulas, aniversários, visitas, passeios, festas e comemorações. Passados milhares de anos vimos o tempo ser fatiado em anos, meses, semanas, dias, horas, minutos e segundos se impondo como controlador das nossas ações.

            O calendário nos proporciona a maravilhosa chance de nos encontrar e fortalecer assim, os laços familiares. Devemos usar o pretexto das comemorações para aperfeiçoar os valores humanos, cívicos e religiosos. É assim quando comemoramos o Natal. As ruas, as casas e as cidades se enfeitam. As luzes piscam em todo lugar espantando a escuridão. A solidariedade rompe a indiferença e o egoísmo e nos lança na direção dos pobres e desvalidos. Fartas ceias são preparadas, chamamos familiares e vizinhos para comemorar. Criaram-se até brincadeiras para aproximar os mais distantes. A alegria, ternura e o amor reinam. Inimizades, descontentamentos, aborrecimentos e contrariedades são deixados de lado. O perdão tem uma chance.

            Temos na Igreja o ano litúrgico que é um “calendário religioso”, que marca os principais acontecimentos da História da Salvação. Ele tem início com o Primeiro Domingo do Advento e termina com a Solenidade de Jesus, Rei do Universo. O ano litúrgico é formado por dois grandes ciclos: O Natal e Páscoa. Ao lado do Natal e da Páscoa temos um período longo, de 34 semanas, chamado Tempo Comum. Passo a passo seguimos o Senhor, celebrando seu mistério que nos transporta do tempo medido para o tempo sentido dando a nossa vida um novo ritmo.

            Cada dia é balizado, melhor, santificado pela liturgia. No alvorecer e entardecer, somos convidados a render louvores ao Criador, a recordar do seu amor, a renovar nossas forças nos unindo a quem, no seu plano salvador, não nos deixou “entregues as mãos da morte”. Ser grato pelo trabalho, pois essa é “uma colaboração do homem e da mulher com Deus no aperfeiçoamento da criação visível” (CIC 378). Em cada noite descansamos, revigorando nossas energias para o novo dia que está prestes a começar. Esses intervalos de descanso nos apontam para o domingo, que no ritmo semanal do tempo, nos lembra o dia da ressurreição de Cristo, “é a Páscoa da semana, na qual se celebra a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, o cumprimento n’Ele da primeira criação e o início da ‘nova criação’” (Dies Domini, 1).

            O padre Daniel-Ange diz que o ano inteiro está estrelado pelos mistérios do Senhor e constelado pelas festas dos santos, portadores de sua presença (o horóscopo dos batizados). O martirológio romano nos propõe um itinerário onde percorremos a vida dos “amigos de Deus” que nos guiam para a santidade. O Papa Francisco nos consola dizendo que “os numerosos santos de Deus, protegem-me, amparam-me e guiam-me” (Gaudete et Exsultate, 4).  

            Podemos dizer que a Igreja liturgiza os grandes acontecimentos da vida através dos sacramentos: nascimento, noivado, casamento, morte, maturidade, vocação. Os demais acontecimentos, não menos importante, têm uma liturgia própria onde se abençoa, “a oração de benção é a resposta do homem aos dons de Deus: uma vez que Deus abençoa, o coração do homem pode bendizer aquele que é a fonte de toda a benção” (CIC 626). Celebra-se, portanto, semeaduras, plantações, colheitas, tempestades, períodos de fome, guerras. Se prevê na liturgia um grande número de pessoas como governantes, políticos, refugiados, exilados, doentes, perseguidos, animais, casas, etc., além de objetos como prédios, altares, pão e vinho, instrumentos.

            Em suma, através dos acontecimentos, circunstâncias e objetos, e sobretudo as pessoas,  toda a existência humana se transfigura pela força do Espírito Santo que em nós e através de nós age para santificar o mundo. Devemos colocar nossa casa nesse ritmo onde o humano aponta para o divino e o divino se digna tocar o humano, elevando-o em sua dignidade esponsal.

            No dia de Pentecostes um extraordinário acontecimento marca a vida dos homens e mulheres reunidos naquela casa. O autor descreve através de gestos e sinais que algo portentoso aconteceu transformando a todos. Podemos falar de um antes e depois de Pentecostes. O Espírito Santo que encheu a todos é o mesmo que continua atuando em nossos dias. Ele quer produzir uma verdadeira explosão espiritual dentro de nossas casas fazendo com que nossos lares reflitam o fascínio dessa valorosa instituição chamada família. Clamemos um novo Pentecostes que faça com que as graças batismais eclodam lavando, purificando, renovando, revigorando pais, mães, filhos, filhas, avós, tios, enfim, todos que vivem debaixo do mesmo teto, que se decidiram viver o aprendizado diário da santidade:

olha! Ouve isto: Deus quer que sejas bela; que sirvas a plenitude da dignidade humana e da santidade de Cristo; que sirvas ao amor e à vida. Tivestes início no Criador e foste santificada pelo Espírito Paráclito, para vir a ser a esperança de todas as nações” (São João Paulo II).


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