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quinta-feira, 4 de março de 2021

Canções de João da Cruz - 1ª estrofe.

 

Onde é que tu, Amado,

Te escondeste deixando-me em gemido?

Fugiste-me como o veado,

Havendo-me ferido;

Clamando eu fui por ti, tinhas partido!

 

Essa expressão “amado” é facilmente encontrada no Cântico dos Cânticos, livro que inspira São João da Cruz na composição do seu Cântico Espiritual. Esse desconcerto por não saber para  onde foi o Amado é sentido pela amada nessa obra sapiencial: “Abri ao meu bem-amado, mas ela já se tinha ido, já tinha desaparecido”.

Essa dor de não ter o Amado, de tê-lo perdido cresce por causa do amor esponsal. Se não fosse por  amor sofreria a amada a ausência do amado¿ Podemos dizer lendo essa primeira parte do poema que existe uma ferida de amor aberta. A amada foi tocada pelo Amado de uma forma que sua ausência passa a ser sentida. A partir daí começa uma busca para encontra-lo.

O poema fala do amor esponsal de Deus. Em seu infinito amor, Deus vem ao nosso encontro, estabelece um matrimônio espiritual. Somos seduzidos por seus encantos que criam em nós um desejo cada vez maior de estar com Ele. Não queremos mais nos apartar dele, sua companhia cria uma alegria contagiante. Mas, porque então o amado se esconde?

            Alguém poderia ser levado a crer que, se o Amado foi embora é porque nos tornamos indignos, que perdemos o merecimento de sua companhia amorosa. E esse  é  um grande engano! O amor de Deus por nós é eterno, sua aliança não se desfaz. Se ele se esconde, devemos procura-lo.

            Sua falta deve criar em nós uma disposição para ir ao seu encontro. Onde podemos encontrar novamente o Amado¿ Dentro de nós! Essa busca não deve nos levar para longe. Ele está perto. Essa é uma busca que deve começar no lugar secreto do nosso interior. Santo Agostinho de forma poética revela que procurou a Deus fora, enquanto ele estava dentro: Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais, eu te amei! Eis que estavas dentro, e eu, fora, fora te buscava”.  

            Essa busca faz crescer uma necessidade permanente de correr na direção de quem nos conquistou. Isso exige descobrir o caminho que nos leva ao encontro com o Amado. Podemos dizer que existem “caminhos”, como nos conta Santo Hilário: há caminhos na Lei, caminhos nos profetas, caminhos nos evangelhos e nos apóstolos, caminhos nas diversas obras dos mestres. Felizes os que andam por eles, movidos pelo temor do Senhor”. Esses “caminhos” nos levam ao mesmo lugar onde me enamoro daquele que me deixa louco de amor.

            “Clamando eu fui por ti”. Clamar, gritar, bradar... todos esses verbos são sinônimos e expressam a mesma coisa no poema: não posso viver longe do Amado!  Por isso devemos guardar um “tempo privilegiado” para a oração, que é esse diálogo de amor que cresce, à medida que ficamos a “sós”. Jesus chama cada um de nós “a entrar no quarto, fechar a porta e orar ao Pai em segredo” (Cf. Mt 6,6). Jesus privilegiava os momentos a sós para orar como os evangelistas testemunham: "Mas ele costumava retirar-se a lugares solitá­rios para orar" (Lc 5,16); "Naqueles dias, Jesus retirou-se a uma montanha para rezar, e passou aí toda a noite orando a Deus" (6,12); "Um dia, num certo lugar, estava Jesus a rezar" (11,1). Assim diz o Catecismo, “Não é, porventura, ao contemplar primeiro o seu Mestre em oração, que o discípulo de Cristo sente o desejo de orar? Pode então aprendê-la com o mestre da oração. É contemplando e escutando o Filho que os filhos aprendem a orar ao Pai”. (CIC 2601).    

            “Do fundo do abismo, clamo a vós Senhor” (Sl 130,1). Clamo por amo, amo porque fui amado!