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sexta-feira, 29 de julho de 2022

A casa de Marta e Maria


"Estando Jesus em viagem, entrou numa aldeia, onde uma mulher, chamada Marta, o recebeu em sua casa. Tinha uma irmã por nome Maria, que se assentou aos pés do Senhor para ouvi-lo falar. Marta, toda preocupada na lida da casa, veio a Jesus e disse: Senhor, não te importas que minha irmã me deixe só a servir? Dize-lhe que me ajude. Respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, andas muito inquieta e te preocupas com muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária; Maria escolheu a boa parte, que lhe não será tirada." (Lc 10, 38-42).

A casa de Marta e Maria é um apelo constante à contemplação e à ação. A contemplação é uma educação do olhar. Uma vez fui ao interior do meu estado e no caminho meu irmão parou e pediu que todos nós desligássemos os faróis dos carros. De repente apareceu um céu estrelado que nos deixou atônitos. Fiquei divagando comigo mesmo: “Onde estava você, ó céu tão lindo, que não o vejo todos os dias?” Algumas experiências têm a força de nos deixar estupefatos, admirados e fascinados, ficando registrados em nossa memória.

Algo semelhante acontece com os pais que acompanham o nascimento e crescimento dos seus filhos. Com muito cuidado colocamos nos braços nossos filhos e abobalhados os olhamos por um longo tempo. Estamos diante de um mistério! De repente percebemos que eles estão crescendo, desvendando os enigmas do lugar em que vivem, a começar pela língua. Eles rapidamente se comunicam e depois dos primeiros passos suas descobertas só aumentam. Os pais costumam guardar objetos que recordam um momento de importante significado na vida dos filhos. Isso transcende o tempo e o espaço e nos lança nas lembranças carregadas de sentido.

Alguns momentos vividos por nós precisam ficar eternizados, por isso ao longo do tempo a fotografia passou a ter um importante papel como guardião da nossa memória. Ela nos aproxima do passado, nos faz reviver o que não queremos esquecer. As fotografias têm a força de provocar milhares de sentimentos, renovando sonhos e expectativas, fazendo com que emoções permaneçam vivas em nossa história. 

    Se na época das duas irmãs, a foto tivesse sido inventada, elas teriam feito um álbum para eternizar esses momentos vividos com o Mestre.

Quando Nosso Senhor chega à casa de Marta, Maria, sua irmã, deixa tudo de lado e presta atenção só nele. O deslumbramento desse encontro fez com que ela desprezasse todo o resto. A admiração que esse encontro lhe causou, a fez esquecer todas as suas tarefas, se perdendo nesse instante que seria perenizados.   

    Nossa sociedade é marcada pela imagem. Costuma-se dizer que “a propaganda é a alma do negocio”, por isso mesmo se vende a imagem de um produto criando no consumidor uma necessidade. Os shoppings centers se transformaram nos modernos santuários onde cada transeunte tem o seu valor transformando-se em um potencial consumidor. A antiga influência grega do culto ao corpo foi redescoberta fazendo com que nos preocupássemos novamente com a aparência. Nesse contexto, a reeducação do nosso olhar, marcada pela contemplação de Cristo, abre os nossos sentidos para descobrirmos o que realmente importa. 

    Deus nos colocou em um lugar comum – a casa – que se transforma em um ambiente sagrado. Devemos olhar o que nos rodeia e contemplar a beleza que se esconde. Quase sempre fazemos as mesmas coisas e isso pode pôr uma venda nos olhos impedindo-nos de enxergar novamente a beleza que nos cerca. Ressignificar é sem dúvida um dos nossos grandes desafios, principalmente em um mundo marcado pela rotina. É óbvio que isso exige um esforço próprio de caminhar iluminado pelo mistério de Cristo que tudo renova e faz com que as coisas ganhem novo sentido. 

    Coloque os olhos na sua casa e contemple a beleza do Evangelho vivo anunciado através dessa “Igreja Doméstica”.

A decisão marcada pelo consentimento amoroso dos noivos faz com que um novo altar fosse erguido. A casa é uma verdadeira Igreja onde os esposos exercem seu sacerdócio comum imolando a cada dia um sacrifício capaz de transformar o lar em um dom que deve ser partido e repartido em favor de uma sociedade onde os valores evangélicos devem se tornar os referenciais para crianças, jovens e adultos.

 A beleza da fé cristã que os casais assumem depois do sacramento do matrimônio corre o risco de se enfeiurar ao longo do tempo por causa das ideologias veiculadas através de propagandas que tentam perverter os valores cridos por nós. Se você assiste com muita atenção a uma novela, vai perceber claramente, que a traição é trabalhada com humor. Os casais se traem e fazem disso uma brincadeira. Busca-se a “harmonia” depois da confusão que se criou. Em uma sociedade em que se quer normatizar o feio, os álbuns de famílias passaram a ter uma nova feição. No álbum, o pai e a mãe deram lugar ao padrasto e a madrasta, não se fala em esposo e esposa e sim, companheiro e companheira. Decidem dividir a mesma casa, querem fazer um “test drive”, quando não, vivem em casas diferentes compartilhando alguns momentos juntos. O que se procura na verdade é uma vida fácil, prazeres desmedidos, diversão. 

O prazer é necessário para uma vida saudável, mas precisa estar associado ao compromisso, à cumplicidade, doação de si mesmo, alegria, generosidade, fidelidade, respeito. De outra forma esvazia o seu sentido e se abre um perigoso caminho para a corrupção.

A revolução sexual da década de 60 foi paulatinamente impondo à sociedade um comportamento baseado na liberdade sexual incentivando homens e mulheres a se aventurarem no prazer. O apelo à experiência passou a ser um regulador sócio-psicológico para novas descobertas nesse campo da sexualidade humana. Houve uma nefasta associação às drogas como a maconha, depois a cocaína, com o intuito de provocar novos prazeres. A partir de então, percebemos uma crescente exploração comercial do sexo através das músicas, TVs, revistas, jornais, filmes, cinemas, teatros, que tem modificado a forma como nos relacionamos. A indústria pornográfica é um produto dessa revolução faturando bilhões todos os anos produzindo material disponível 24 horas por dia. Tudo isso nos leva a crer que estamos diante de uma grande erotização da sociedade que atinge frontalmente as famílias. 

Com isso, recordamos uma antiga luta contra um grave pecado: a luxúria. O Catecismo da Igreja Católica diz que “a luxúria é um desejo desordenado ou um gozo desregrado do prazer venéreo. O prazer sexual é moralmente desordenado quando é buscado por si mesmo, isolado das finalidades de procriação e de união”. Santo Tomás de Aquino afirma que “há sempre uma espécie determinada de luxúria onde houver uma razão especial de deformidades, que torne o ato sexual indecente. Isso pode ocorrer de dois modos: primeiro, quando choca com a reta razão, como é o caso de todos os vícios de luxúria; depois, quando, além disso, se opõe à própria ordem natural do ato sexual próprio da espécie humana, o que constitui o chamado vício contra a natureza. Isso pode se dar de muitas formas”.

O pecado da luxúria corrompe aquilo que é belo, estabelecendo uma desordem, provocando uma progressiva degradação do ser humano em suas relações, fragilizando o indivíduo, levando a morte.

Passa a se enxergar o outro como “coisa”, coisificando os relacionamentos levando em conta o proveito, a utilidade, a serventia. Procuram-se amores e não compromissos, satisfação de desejos e não doação de si mesmo. O apelo a “múltiplas relações amorosas”, permitindo viver a aventura dos prazeres tem contrastado com a necessidade de compromisso, fidelidade e respeito. Na década de 60, o artista Raul Seixas na música “Medo da chuva” relaciona o casamento a uma escravidão, achando necessário se libertar da dominação imposta. Não é isso que pensam muitos jovens sobre o casamento?

Olhares, pensamentos e sentimentos, das antigas e novas gerações, têm sido marcados por um forte apelo pornográfico que tem feito grandes estragos. Com pequenas doses vamos enchendo a alma de sujeira, imundícies criando uma rotina perversa que reduz o indivíduo a um mero objeto. Vamos aumentando a dose e sem menos esperar estamos inchados de desejo, sedução, malícia, mentiras, egoísmo. Santo Afonso nos ensina que “quase todas as paixões que se revoltam contra nosso espírito têm sua origem na liberdade desenfreada dos olhos, pois os olhares livres são os que despertam em nós, de ordinário, as inclinações desregradas.”

E é no segredo que essa perversão vai inchando o indivíduo deixando-o mórbido. Do segredo dos pensamentos ao segredo do quarto, do banheiro, do trabalho, da internet, das redes sociais, vamos vendo a degradação moral que desfigura aquele que é chamado a amar como Jesus amou. Se dermos ouvido ao convite do Mestre para “entrar no quarto e orar ao Pai em segredo...” (Cf. Mt 6,6) não estaremos mais sozinhos mas na companhia Daquele que nos arranca “do poder das trevas e nos introduz no reino de seu Filho muito amado, na qual temos a redenção, a remissão dos pecados” (Cf. Cl 1,13).     

Devemos reeducar nosso olhar. Voltando à cena do Evangelho, aprendemos com Maria o que devemos fazer para vencer esse mal. Ela ficou extasiada diante do Senhor, não tirou os olhos dele, seu fascínio por Jesus a fez “escolher a melhor parte”. A contemplação das imagens sagradas, alguns minutos diante do Santíssimo Sacramento, a meditação da cruz, a iconografia, são apenas alguns meios que o Médico dos médicos dispõe para nos curar. Devemos encher nossos olhos das “coisas do alto”, (Cl 3,1), nos envolver com o sagrado, procurar desvendar os segredos do eterno, entrar na esfera do divino. Nosso esforço deve ser para fazer essa experiência transfigurante para que a beleza escondida em nossa casa seja achada novamente.